O projeto de reforma da previdência do governo Temer

Guilherme Costa Delgado

 

Em vésperas do Natal de 2016, o governo Temer, depois de vários adiamentos, apresenta ao Congresso seu projeto de reforma da previdência (PEC 286/2016), afetando diretamente o Regime Geral de Previdência Social (abrange cerca de 60,0 milhões de segurados ativos e cerca de 34 milhões de benefícios pagos às famílias, com valor médio de 1,5 salários mínimos);e parcialmente os regimes de Servidores Públicos da União , Estados e Municípios (cerca de 6,0 milhões de segurados ativos, com leque de benefícios variando do salário mínimo ao teto legal, atualmente pouco acima dos 34,o mil reais). Foram excetuados da reforma as Forças Armadas e as Polícias Militares dos Estados e respectivos Corpos de Bombeiros, pela justificação previdenciária de que seus regimes de trabalho não são equiparáveis à Previdência Social, principalmente pelo argumento da nivelação da idade única de aposentadoria para todos, que é a proposta principal da PEC 286/2016. Do mesmo argumento ora se valem as Polícias Civis, para também reivindicar exclusão.

 

Mais além da Previdências Social e de parte dos servidores públicos, o Projeto Temer inclui também o sistema de Assistência Social, vinculado às aposentadorias por idade e por todas as formas de invalidez ((cegos, surdos, mudos, coxos, doentes mentais dentre outros), condicionados à extrema pobreza (até ¼ de renda per-capita familiar).

 

Tendo por propósito unificar os regimes previdenciários do setor público no sentido de lhes impor uma idade única de aposentadoria – de 65 a 67 anos, fazendo no geral ‘tabula rasa’, das diferentes situações sociais; há duas estratégias comunicativas, no sentido de justificar a ‘Reforma Temer: a primeira é a argumentação demográfica, utilizada fartamente na Exposição de Motivos da PEC (13 páginas de EM), com fatos e deduções que de certa forma se chocam com o segundo argumento. O segundo argumento, de natureza fiscal, praticamente não aparece na EM, relativamente à situação conjuntural, mas é o prato predileto dos áulicos da “urgência e inevitabilidade”, quando não da ameaça de – “é isto ou o caos”, tantas vezes brandido no Congresso pelo Relator da PEC do Teto Orçamentário, na Câmara Federal. Mas se abrirmos o pacote da Reforma, sob o crivo da ética previdenciária, é possível que tenhamos que colocar o verbo ser em outro lugar na expressão caótica. À parte – as justificativas sobre o que se pretende fazer com a PEC, é importante destacar uma certa hierarquia factual das medidas propostas, no sentido de desvendar quem e como são escolhidos os grupos sociais para o sacrifício: idosos e inválidos em extrema pobreza, agricultores familiares e Previdência Rural, mulheres, pensionistas de classe média baixa, idosos e inválidos em geral e jovens trabalhadores.

 

  • Coincidentemente, no terceiro domingo do tempo litúrgico do Advento, que neste ano de 2016 caiu no dia 10-12-2016, o Evangelho de Mateus nos fala da boa nova que Jesus comunica a João Batista: “… os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”; a PEC 287/2016, em contrapartida, comunica uma péssima notícia a todos esses grupos modernamente definidos como idosos e inválidos em extrema pobreza ( cerca de 4,2 milhões de benefícios pagos em todo o Brasil). Eles são escolhidos para perder o piso do salário mínimo como valor dos seus direitos assistenciais assegurados pela Constituição Federal (Art. 203, inciso V) e também a idade de concessão, sempre sob prova prévia de extrema pobreza, que fica elevada para 70 anos. E essa massa de mais de quatro milhões de vítimas ficaria a depender do novo piso assistencial, a ser fixado administrativamente pela autoridade de plantão do Ministério da Fazenda, que com toda certeza viria abaixo do salário mínimo.

 

  • Com relação ao agricultor familiar inserido na Constituição e mantido como tal por todas as reformas anteriores, sob a condição de segurado especial, a quem se lhe solicita prova de trabalho no regime de economia familiar e secundariamente contribuição financeira sobre o excedente comercializado (quando houver), a PEC inverte a situação passando a exigir contribuição financeira regular. E na hipótese de isto não ocorrer, o segurado especial ficaria fora do acesso aos benefícios. Imagine-se a situação do agricultor familiar do semiárido nordestino às voltas com cinco anos de seca contínua e que lá permanece!

 

  • À Previdência Rural são reservadas ainda várias restrições, revertendo diferenciações que o Constituinte de 1988 criara: idade única de aposentadoria, sem distinção de homem e mulher, rural ou urbano, de 65 anos, na contramão das expectativas de vida regionais e dos direitos vigentes desde 1988; 25 anos de prova de trabalho, aí incluindo o tempo de contribuição depois da PEC aprovada, contra a regra atual que é apenas de prova de trabalho por 15 anos. Acrescente-se que o critério atual já é tão oneroso em termos de comprovação burocrática, que a própria EM reconhece serem os benefícios rurais, em cerca de 30%, concedidos por decisão judicial.

 

  • Às mulheres em geral e às mulheres rurais em particular são reservadas as cargas mais pesadas de onerações, sob a argumentação algo cínica da EM, de que estaríamos na era e sob a cultura da igualdade de gêneros. Faz-se “tabula rasa” das diferentes jornadas reais de trabalho e remunerações e se impõe a idade única de aposentadoria. Agrava-se ainda a situação feminina de maior longevidade comprovada, de duas formas; a) pela proibição de acumulação de aposentadoria e pensão na hipótese do falecimento do cônjuge; b) pela redução a 50% do valor do benefício atual às novas pensões a serem concedidas depois da PEC aprovada. Observe-se que a esmagadora maioria dos pensionistas do INSS, que coordena o RGPS, ganha salário mínimo, e na média essas pensões estão na faixa de 1,5 a 2,0 salários mínimos, diferentemente do que ocorre nos regimes de serviço público. Felizmente não se mexeu nas pensões de salário mínimo. Mas se mexeu em qualquer centavo acima deste.

 

  • Aos idosos e inválidos em geral se os onerou com duas cargas novas de sacrifício – os primeiros, como já se disse com a idade única de 65 anos de aposentadoria, indo até 67 quando houver determinada mudança demográfica (mudança de expectativa média de sobrevida acima dos 60). Mas além desse ônus, sub-repticiamente se introduziu outro, tanto para idosos, quanto para inválidos – a redução significativa no valor das aposentadorias, visto que se introduziria na Constituição uma regra de carência, que praticamente exigiria 49 anos de contribuição para se ter direito a 100% do valor médio do salário de contribuição. E isto vale para todos, mesmo para as pessoas com 50 anos ou mais (homens) e 45 anos ou mais (mulheres), que aparentemente entrariam numa regra de transição razoável (trabalhar 50% a mais do tempo que falta para aposentar);

 

  • Aos jovens trabalhadores de menos 50 anos, que já estão no mercado de trabalho e aos que nele ainda vão ingressar, o cenário que se lhes oferece no longo prazo é esse que está desenhado para os seus pais e avós atuais.

 

 Tudo isto nos tem sido vendido sob o manto nada sagrado do sacrifício necessário, da urgência, da irreversibilidade do caos se não atendidas as exigências de um novo deus da história -os mercados financeiros; e de muita falácia para ludibriar ou nos fazer de tolos. E como em toda falácia astuta, se lhe entremeiam alguns argumentos meio verdadeiros, sonegando-nos a narrativa integral dos fatos, para nos impor interesses escusos da “pátria financeira”. A esta é que na verdade se destina a montanha de rendimentos extraídos dos vários grupos sacrificados. Se considerarmos essa transferência injusta e indevida, a apropriação indébita de todos os réus confessos da “Lava a Jato”, em termos de valores e ardis envolvidos, faria àqueles réus parecerem delinquentes “pés- de- chinelo”.

 

Uma reforma da Previdência séria é necessária, para garantir direitos básicos, ajustar-se equilibradamente ás tendências demográficas de longo prazo, corrigir alguns privilégios corporativos, provisionar o sistema de recursos mediante taxação de setores classicamente desonerados e principalmente cumprir o objetivo de universalização, trazendo para dentro do sistema um pouco mais de 1/3 da força de trabalho que dele ainda não participa. Mas a Reforma Temer nada disso cogita, porque pensa apenas na restrição de direitos básicos, sob o pretexto de se ajustar às tendências demográficas.