Ricardo Bielschowsky (IE-UFRJ)
A evolução econômica e social nos últimos oito anos tem sido favorável à população. Dá esperança e alento à pressão social por redução nos níveis de pobreza e de concentração de propriedade, renda, poder e acesso a direitos da cidadania que, a despeito dos importantes avanços recentes, persistem em forma acentuada na sociedade brasileira.
A era da industrialização brasileira conduzida pelo Estado (1930-1980) produziu o pensamento desenvolvimentista, voltado ao projeto de transformação estrutural da economia, da base agrário-exportadora à urbano-industrial. O que está fazendo o pensamento desenvolvimentista atual?
O contraponto ao velho desenvolvimentismo é útil para qualificarmos a pergunta. Com essa finalidade, resgato três de suas características.
Primeiro, defendia-se o principio de que o Estado é necessário para dar eficiência à economia de mercado e para viabilizar uma estratégia de transformação estrutural. De forma simplificada, pode-se dizer que esse princípio é, de um modo geral, compartilhado pelo desenvolvimentismo na etapa atual.
Segundo, defendia-se uma estratégia econômica clara, a industrialização. Pergunta-se: qual é a estratégia atual?
Terceiro, duas correntes se enfrentavam no que se refere a transformações no campo social: o desenvolvimentismo conservador e o progressista. A vitória da primeira foi sendo garantida por estruturas rígidas de poder e dominação, e foi consagrada pelo Golpe de 1964, tornando-se corrente hegemônica na condução dos governos militares; aoutra, que buscava inclusão social pelo trabalho e pela participação popular nos frutos do progresso técnico gerado pela industrialização,prosseguiu na luta política por uma sociedade mais justa, mesmo depois de 1964. Foi premiada com a redemocratização e com a Carta Constitucional, que assegura amplos direitos à cidadania. Pergunta-se: qual a estratégia desenvolvimentista atual, no que diz respeito ao campo social?
No que se refere à primeira das duas perguntas, ou seja, à estratégia no campo econômico, meu diagnóstico da evolução recente e das perspectivas quanto ao futuro é o de que, apesar de políticas macroeconômicas até aqui nem sempre favoráveis ao crescimento, e quase sempre desfavoráveis à competitividade, o país entrou desde meados dos anos 2000 numa nova etapa. Instalaram-se na lógica de expansão da economia brasileira três frentes de expansão, ou três “motores do investimento”, cuja combinação contém forte dinamismo potencial de longo prazo: mercado interno de produção e consumo de massa, infraestrutura (produtiva e social) e recursos naturais.
Não é pouco. Se considerarmos que uma estratégia de desenvolvimento é o desenho da condução deliberada por governos e atores sociais de um padrão de desenvolvimento viável, pode-se dizer que estamos diante de possibilidades de definição de uma estratégia promissora no campo econômico que não se viam desde que, em 1980, terminou o meio século de crescimento e progresso técnico pela via da industrialização. Depois de mais de duas décadas de estagnação e falta de perspectivas, vem se configurando no período recente um padrão viável de transformações estruturais condutoras do desenvolvimento, centrado na mencionada tríade de motores de investimento.
A potencia dos motores depende, no plano externo, dos desdobramentos da crise internacional; no plano interno, depende da estratégia e das políticas a serem seguidas, especialmente no que se refere à adição aos motores de dois “turbinadores” -inovação tecnológica e ampliação de encadeamentos produtivos internos- e ao aumento da taxa de investimento.
Um tratamento inadequado desses motores levará ao desperdício do enorme potencial de expansão da produtividade, renda e emprego por eles representado. Há, por exemplo, os perigos de que se generalize um formato de enclave no “agrobusiness” exportador da fronteira agricola, de que os investimentos em infraestrutura se façam com bens de capital e componentes de alta densidade tecnológica majoritariamente importados, e de que o crescimento se faça com continuidade da desindustrialização.
A propósito, vale advertir que o modelo dificilmente se sustentará se for de consumo de massa no Brasil e de produção em massa na China – é necessário que seja de produção e consumo de massa no país. O desempenho insatisfatório da indústria manufatureira desperdiça um espaço nobre de produção e criação de renda e emprego, no qual não só se encontram potenciais ganhos de produtividade e competitividade oriundos da escala da produção em massa e da inovação, mas igualmente um potencial de geração de divisas que permitiria contornar restrições de balanço pagamentos ao crescimento, tão recorrentes na história econômica brasileira.
O espaço a ser ocupado por políticas governamentais que maximizem as potencialidades e se contraponham às obstruções ao desenvolvimento nacional é enorme. O “novo desenvolvimentismo”, no campo da economia, deve ir muito além da necessária macroeconomia para o crescimento e a competitividade – que, erroneamente, vem monopolizando o debate sobre desenvolvimento – e incluir a esfera da transformação produtiva pela via do investimento e da inovação.
Passo, agora, a dois comentários sobre a relação entre o campo econômico e o social. Eles têm o sentido de mostrar que, apesar do fato de que a assimilação dessa relação pelo novo desenvolvimentismo ainda requer muita elaboração, o contexto histórico para avanços é fértil. Considero correta a afirmação de Eduardo Fagnani, coordenador da rede “Plataforma Política Social”, em mensagem recentemente dirigida aos participantes da rede: “A principal hipótese com a qual tenho trabalhado é que essa melhoria no bem-estar é fruto dos ensaios de novo modelo de desenvolvimento que ampliou a convergência entre objetivos econômicos e sociais”. Os dois comentários que se seguem mostram minha afinidade com essa proposição.
O primeiro diz respeito a uma conexão relativamente obvia entre a dimensão econômica e a social do desenvolvimento, que as integra. Como vem sendo reconhecido, o consumo de massa tem sido elemento decisivo na expansão econômica recente, e foi produto de forte aumento da massa salarial e das transferências (para os quais o aumento do salário mínimo foi decisivo), de aumento do crédito popular e de queda nos preços relativos dos bens de salário.
Nem todos os estudiosos de políticas governamentais sabem que a estratégia de crescimento com redistribuição de renda pela via de produção e consumo de massa foi anunciada com todas as letras no Programa de campanha de Lula em 2002 e destacada pelo governo no Plano Plurianual 2004-2007, aprovado em 2003. Por suposto, o que ocorreu desde então nada mais é do que um primeiro passo num longo percurso na direção do atendimento, mais de quarenta anos depois, da proposta que Celso Furtado e outros intelectuais e políticos progressistas fizeram de mudança do modelo, de renda concentrada e consumo de elite para renda desconcentrada e consumo de massa.
O segundo comentário se dirige a um ponto talvez bem mais controvertido. Para além do fato de que houve uma melhoria na distribuição da renda e uma queda substancial nos índices de pobreza, e de que houve ademais um significativo aumento na ocupação e na formalização nas relações de trabalho, o que se pode dizer relativamente ao atendimento dos direitos da cidadania, expressos na Constituição de 1988?
Tem razão Fagnani quando sintetiza a problemática ao dizer que coexistem na sociedade brasileira, desde a promulgação da Constituição, duas tendências de sentidos opostos, que expressam uma tensão entre os paradigmas do Estado Mínimo versus o do Estado de Bem-Estar social. A primeira ganhou impulso entre 1990 e 2002, com o neoliberalismo, e a segunda esboçou reação num quadro de ambiguidades nos primeiros anos dos governos Lula, de 2003 a 2005, e parece ter conquistado espaços mais significativos desde então.
Por um lado, podem-se encontrar indicações de que não se desfez a imensa concentração de propriedade, aumentaram as pressões e o avanço da mercantilização e privatização das políticas sociais, bem como as restrições e captura de fontes de financiamento, e se enfraqueceu o pacto federativo.
Por outro, podem-se encontrar evidencias de avanços na direção do fortalecimento das políticas universais, da maior convergência dessas ações com políticas voltadas para o combate da miséria extrema, a consolidação dos avanços institucionais nas políticas de educação e Seguridade Social (saúde, previdência, assistência Social, Segurança Alimentar e Seguro-Desemprego), do estabelecimento de uma política de valorização do salário mínimo, da formalização no mercado de trabalho e de alguma ampliação dos investimentos por políticas urbanas.
A coexistência de tendências contraditórias não deveria surpreender: o momento é de embate entre a afirmação do individualismo de mercado, próprio do neoliberalismo, e a defesa dos princípios da solidariedade e dos direitos, expressos na Constituição de 1988. A clara identificação de uma estratégia de desenvolvimento desejável e viável, em que progressos na economia e na sociedade se façam de forma integrada, fortalece a disputa política e ideológica em favor do projeto de cidadania plena.