André Biancarelli*
Visitar a história sempre é providência útil para arejar o debate dos problemas conjunturais, principalmente aqueles que envolvem velhos temas e novos dogmas. A inflação brasileira nos atribulados anos 1980 joga luz sobre o presente, não pelos seus contornos em si, mas pelas reflexões que provocou.
De 1982 para 83, o IGP-DI, que girava em torno de 100% ao ano desde o fim da década anterior, saltou para 200% e por aí se manteve até 1985. Era difícil argumentar que fosse uma inflação de demanda, já que o PIB acumulado caiu mais de 6% no triênio 81-83 e a política econômica também já era, depois de alguma resistência, abertamente contracionista como recomendava o mainstream acadêmico/financeiro de então.O déficit público foi cortado de 7% para pouco mais de 3% do PIB.
O quadro, nitidamente, exigia outros elementos explicativos. E estes foram buscados nas especificidades do país, ausentes da sabedoria convencional de então.
A mais influente destas explicações “heterodoxas” (adjetivo hoje estranho para alguns dos personagens) é bastante conhecida.A disseminação dos mecanismos de indexação havia conferido um caráter “inercial” ao aumento de preços, pelo qual os efeitos de choques de oferta se perpetuavam, e contra o qual a ortodoxia monetária e fiscal era arma insuficiente. Outras hipóteses que surgiram eram menos “neutras” no que se refere aos efeitos distributivos e à capacidade de fixação de preços. E davam um peso muito maior à restrição externa dos anos 1980 na explicação da inflação. Estas últimas ideias, na segunda metade da “década perdida”, foram aprimoradas e ganharam maior capacidade explicativa, diante de uma inflação que passou a acelerar e não mais se manter.
Há uma rica controvérsia sobre os desdobramentos práticos destas teorias, na forma dos planos de estabilização daquele período. Controvérsia que o sucesso posterior do Plano Real não solucionou, mas isto é tema para outra coluna. O importante aqui é chamar a atenção para outro aspecto: o espaço para o questionamento dos diagnósticos e receitas convencionais quando estas se chocam com a realidade.
Três décadas depois, o quadro inflacionário no Brasil é radicalmente melhor, em termos quantitativos e qualitativos. Mas a persistência do aumento de preços, nos últimos anos, em torno de 6% ao ano incomoda e domina a pauta das discussões econômicas no país. Mais do que isso, submete e compromete outros objetivos e frentes de política econômica. E no entanto as discussões sobre o tema, em diferentes instâncias, são muito restritas, presas a detalhes técnicos ou jurídicos, “humores” dos operadores do mercado financeiro, casas decimais, sentidos ocultos ou explícitos na comunicação do Banco Central. A pobreza do debate é notável.
Tome-se um desimportante episódio desta semana. Diante de uma discussão técnica sobre o IPCA, que expressa mal o impacto dos preços de alimentos no custo de vida, e sua relação com a política monetária, levantou-se toda a sorte de acusações. Como o tema é politicamente sensível, e uma mudança agora soaria como oportunismo, vozes oficiais rapidamente esclareceram (ou assumiram) que este debate está interditado.
Mas por que ele, ou outros muito mais gerais, não podem ser travados fora da disputa eleitoral ou do jogo de interesses do mercado financeiro?
Tem-se em operação no Brasil um arcabouço de política monetária – as metas para a inflação – construído sobre uma visão bastante estreita do que seja a moeda ou o movimento de preços. A taxa de juros é seu único instrumento, teoricamente adequado para combater este único tipo de inflação, mas que impacta toda a economia. Acrescente-se a isso uma institucionalidade extraordinariamente rígida, uma condução quase sempre conservadora e um canal de transmissão não explicitado mas fundamental: a taxa de câmbio.
Ao longo do último ano, a Selic foi elevada de 7,25% para 11% ao ano e os índices de inflação – tanto verificados quanto projetados – só se moveram para cima. Grosso modo, eles parecem embalados por três grandes componentes: os choques de oferta sobre os alimentos; os mecanismos de indexação ainda presentes; e uma inflação de serviços persistentemente mais alta. Em relação aos dois primeiros, a alta da taxa básica de juros não tem efeito direto nenhum, e para combater a sua propagação, provoca um importante realinhamento de preços relativos.
Já a inflação de serviços decorre basicamente da mudança de fundo pela qual passa o país na última década, de redução nas diferenças sociais expressas nas remunerações do trabalho e no emprego. Para reverter este processo civilizatório a ponto de neutralizar seus impactos inflacionários – que não são eternos, mas também não de curto prazo – a dose de aperto na política monetária teria que ser cavalar, jogando na recessão uma economia já lenta.
Os dilemas mencionados nos últimos três parágrafos, e suas distintas naturezas (teóricas e práticas; econômicas, políticas e sociais), definitivamente não cabem na camisa de força à qual está submetido o debate sobre a inflação no Brasil. Dos agentes mais chamados a opinar – bem acomodados dentro destas amarras, por convicção, interesses ou cálculo político – é que não partirá o necessário aprofundamento do debate.
* André Biancarelli é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da mesma instituição e coordenador da Rede Desenvolvimentista.