Nelson Rodrigues dos Santos*
É animadora e renovadora dos esforços e esperanças a oportuna e consistente reação de entidades como o Cebes, Abrasco, Abres e, agora, a Plataforma Política Social, diante da anunciada reunião da presidenta Dilma com pesos pesados do mercado na saúde: Bradesco, Amil e Qualicorp.
No espaço de artigo curto, não vemos como não iniciar pelo resgate abreviado do processo sócio-político envolvente. Ainda que a anunciada não seja confirmada, será mais relevante a transparência e compreensão das ações concretas que o Estado brasileiro vem dispensando aos sistemas público e privado de saúde, perante o disposto nos artigos 196 a 199 da nossa Constituição.
Já nos anos 80, algumas grandes empresas eram desoneradas de tributos em troca de assistência à saúde dos seus empregados, e logo terceirizaram essa assistência às nascentes operadoras privadas de planos e de seguros de saúde – OPPSS. Na época, predominava largamente para a classe trabalhadora urbana e rural a assistência à saúde fornecida pelo INAMPS, FUNRUAL, os municípios (convênio AIS) e Estados (convênio SUDS), que tiveram a sua agregação estrutural e funcional equacionada em crescentes eventos participativos naquela década, culminados pelo SUS na CF/88 sob a lógica da Universalidade, Igualdade, Integralidade, Descentralização, Regionalização e Participação.
Foi como que uma adequação às nossas realidades, do paradigma do Estado de Bem Estar Social na Europa, Canadá, e outros, implementado com sucesso desde o início de século passado. Pressupunha-se, nos anos 80, que nesse rumo as poucas OPPSS assumissem efetivamente a disputa de mercado: custos, preços, qualidade e os riscos inerentes à competição, o que é regra no chamado “modelo europeu”. Subestimamos, no início dos anos 90, o quanto as velhas e as novas elites do nosso capitalismo dependente, respaldadas pelo ideárioe inteligência estratégica do “consenso de Washington”, aparelharam nosso Estado para que, de modo intensivo e crescente, patrocinasse simultaneamente: a) o drástico sub-financiamento público federal do SUS, b) a pesada e crescente desoneração fiscal (gastos tributários) no mercado das OPPS, e c) o co-financiamento federal de planos e seguros privados para todos os servidores, empregados públicos e autoridades do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e das estatais – além da grande expansão dos contratos coletivos de planos privados de saúde no setor privado. Deu-se, nos anos 90, a concretude e o significado amplo e complexo da adesão aos planos privados de toda a classe trabalhadora organizada no setor privado e público, assim como de todas as classes médias, e o consequente esvaziamento desses decisivos segmentos nas lutas sociais pelos direitos de cidadania na saúde.
Em 1998, sem qualquer debate com os conselhos de saúde e com a sociedade, o poder Executivo, com maioria no Congresso Nacional, envia projeto que gera a Lei 9656/98, para organização e regulação do mercado na saúde, o mesmo se dando no ano 2000 para a Lei 9961/00 que cria o ANS, e não por coincidência, usa a mesma maioria para a aprovação da EC-29 com a parcela federal baseada na variação nominal do PIB, que mantem nosso financiamento público per-capita entre os mais baixos do mundo: quase sete vezes menor que a média dos países com bons sistemas públicos de saúde e quase duas vezes menor que a média do Uruguai, Argentina, Chile e Costa Rica (que não possuem um “SUS constitucional” como nós).
Pesquisas posteriores revelaram que a renúncia fiscal (gastos tributários) ao mercado na saúde, já vinha crescendo, chegando a corresponder a 26,4% dos gastos do Ministério da Saúde – MS em 2003, que se elevaram a36% em 2006,com velocidade de crescimento de 73,6% entre 2003 e 2007, bem superior à do MS, de 49,9%. Projetando-se para hoje, os gastos tributários com o mercado na saúde correspondem a mais de 40% dos gastos do MS. Se computarmos os gastos do Tesouro Nacional com o co-financiamentode planos privados de saúde para todo o pessoal federal e outra vultosa desoneração das OPPSS que é o não ressarcimento ao SUS, obrigado em Lei, seguramente ultrapassaria a metade dos gastos do MS, que são as subvenções diretas e indiretas do Tesouro Nacional ao mercado na saúde.
Qual o peso dessas subvenções no faturamento anual do conjunto das OPPSS? Muito provavelmente, entre 30 e 40%. Qual seria o desenvolvimento nos últimos 20 anos, e o atual perfil produtivo das OPPSS, sem as subvenções estatais? Sob o ângulo de desenvolvimento do nosso capitalismo dependente, nossas velhas e novas elites imprimem ao Estado o caráter de aparelho criador de mercado, que capciosamente denominam de saúde “suplementar”. Aliás, esse caráter de aparelho criador de mercado gerou na área econômica nos mesmos 20 anos a classe dos credores da dívida pública, antes incipiente, e agora detentora de mais de R$ 200 bilhões anuais, somente de juros. É a nossa novíssima elite que, em articulação com a nova e a velha, vêm hegemonizando em nosso Estado, suas políticas públicas. Cremos ser um projeto de hegemonia uniforme e crescente, com “start” formulador em 1.989, no âmbito do consenso de Washington, não por acaso, o mandato ampliado da presidência da República.
Superestimamos e idealizamos, nos anos 90, a construção incremental do SUS de “baixo para cima”, com a Atenção Básica à Saúde, no célere caminho da universalidade e resolutividade, imprimindo novo paradigma aos serviços assistenciais de média e alta densidade tecnológica e custo. Na realidade essa estratégia viu-se ano a ano, refém da hegemonia do setor privado complementar conveniado e contratado no SUS para assistência médico-hospitalar, remunerada por produção, que na maior parte foi sendo simultaneamente credenciado pelas OPPSS com valores de tabela 5 vezes maiores. E a Atenção Básica subfinanciada foi se estabilizando em baixíssima cobertura efetiva e resolutividade, felizmentecom conquistas pontuais de imprescindível experiência acumulada.
Nessa dura caminhada muitas perdas se deram na militânciada reforma sanitária pelo SUS, por desistência e/ou cooptação, porém sempre renovadas; dois ministros (do nosso testemunho pessoal) amargurados retiraram-se (1.993 e 1.996) e outro pactuou previamente seu curto mandato para patrocinar o pacto tripartite “Pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão” (2005/2006). O não acesso do nosso testemunho aos demais não nos coloca, contudo, qualquersuspeição. Os sete governos nacionais desde 1990 vêm cumprindo essa mesma lógica da real política de Estado para a saúde.
As diferenças na área social concentram-se na estratégia dos programas de transferência de renda com potência de impactar positivamente o mercado interno e o emprego, a partir de 2003.A ANS, criada com cinco diretores com três ou dois extraídos do setor público, há anos tem os cinco extraídos do setor privado, hoje capturada pelo mercado, permanecendo o Estado como financiador e operador da autorregulação do mercado, mercado esse de acumulação e expansão intensivas. Por isso assistimos a compra de pequenas e/ou fracas por grandes OPPSS, diminuindo seu número, simultaneamente ao crescimento do número de consumidores. E em parte das grandes OPPSS, iniciam-se planos de baixo custo e cobertura voltada para as classes C e D, e consequente elevação de demanda de consumidores, ao SUS que se torna complementar para exames e tratamentos.
Essa desenvoltura constou na recente compra da maior OPPSS brasileira, a AMIL, pela United Health dos EUA. E há poucos dias foi anunciada reunião da AMIL, Qualicorp e BRADESCO – saúde com nossa presidenta e cinco ministros. Nossa intenção é de aqui lembrar que pelo menos a partir de 1998, uma série de acontecimentos na relação da Saúde Suplementar (OPPSS) – Estado, aclaram que foi e continua sendo privilegiada e estruturada, complexa “cadeia produtiva” de serviços privados, que hegemoniza o mercado e a própria política de Estado para a saúde.
Ao subestimarmos desde o início a força e competência das velhas e novas elites, e, com os princípios constitucionais na mão, superestimamos a construção incremental do SUS, desconsideramos que a desproporção era e é de Davi para Golias. A cada acontecimento ou fato que tomamos conhecimento, no âmbito dessa complexa cadeia produtiva, propomos não reagir como sendo fato isolado, pontual e casuístico, cuja possível rejeição indignada e até recuo, pudesse significar maior abalo nessa cadeia hoje hegemônica. Como reagimos e com que forças, clareza e agregações aos fatos, pelo menos os mais marcantes, desde os anos 90, dessa “cadeia” e política do Estado?
A anunciada reunião com a presidenta, confirmada ou não, teria sido mais ou menos deletéria para o SUS e os direitos da população, do que todas as outras, dos outros presidentes e seus ministros da Fazenda, da Casa Civil e do Planejamento? O grande fato novo dessa anunciada reunião, até prova em contrário, teria sido a exposição pessoal da figura presidencial, seja por distração, por submissão à “governabilidade”, por convicção, por trato midiático com as classes C e D, etc.
Assim sendo, auguramos que nossas reações a essa reunião minimizem a indignação de “pegos de surpresa” ou de que “não se podia imaginar essas coisas acontecendo”, porém, que maximizem a renovação dos movimentos da reforma sanitária e da “militância do SUS”, mais do que nunca, junto aos movimentos sociais, aos formadores de opinião, aos movimentos e redes dos jovens, aos conselhos de saúde, aos trabalhadores de saúde, aos gestores descentralizados e aos parlamentos. Seria como a revisão/renovação/fortalecimento das nossas estratégias de Davi perante o Golias.
* – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Departamento de Medicina Preventiva e Social.