Programa Seguro-desemprego: qual a reforma necessária?

Tiago Oliveira* e Alexandre Ferraz**

A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo capítulo no processo histórico de construção de um sistema de proteção social e de garantia de renda no Brasil. Ao incorporar o conceito de Seguridade Social como princípio organizador da proteção social brasileira, a Carta Magna procurou articular as políticas de previdência social, assistência social, saúde e seguro-desemprego, ampliando consideravelmente o acesso a estas políticas e dotando-as de novas formas de gestão – mais descentralizadas e com maior participação social –, assim como de orçamento próprio com fontes exclusivas e diversificadas de financiamento. Assim, pode-se dizer que a Constituição de 1988 formatou as bases de um sistema de proteção social de vocação universal, com o que redefiniu o alcance da cidadania no país, conforme sugerem Delgado, Jaccoud e Nogueira (2009).

O Programa Seguro-desemprego foi criado em 1986, pelo Decreto-lei nº 2.284, no contexto do Plano Cruzado e da centralidade do combate à inflação no debate econômico e na agenda governamental.1 No mercado de trabalho, contribuíram para o seu surgimento as oscilações do desemprego em sintonia com os ciclos econômicos da década de 1980, o que, em alguns momentos, provocou um deslocamento do seu nível para patamares elevados, e o crescimento da informalidade, alimentado pela dificuldade do trabalhador demitido em transitar para uma situação de desemprego aberto.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu o seguro-desemprego como direito social do trabalhador submetido a situação de desemprego involuntário, ao tempo que estabeleceu as fontes de seu financiamento, o PIS – Programa de Integração Social – e o Pasep – Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, posteriormente regulamentadas pela Lei nº 7.998/90, que criou o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Nesse quesito, convém destacar que o texto constitucional prevê ainda a criação de uma contribuição adicional para as empresas que apresentam índices de rotatividade superiores à média do setor (Art. 239, § 4º). Este dispositivo, até o momento não regulamentado, teria o duplo benefício de desincentivar a rotatividade no mercado de trabalho e de dar maior sustentabilidade financeira ao programa. O fato é que a Constituição Federal de 1988 lançou as bases para a edificação de um sistema público de emprego no Brasil, tal como hoje ele se organiza.

Nos anos seguintes, o universo potencial de beneficiários do seguro-desemprego foi ampliado para além do público-alvo tradicional, ou seja, o trabalhador desempregado demitido sem justa causa. Em 1992, passaram a fazer jus ao benefício os pescadores artesanais impedidos de exercer a sua atividade profissional durante o período de defeso. Em 1999, instituiu-se a bolsa de qualificação profissional, benefício voltado para trabalhadores que têm o seu contrato de trabalho suspenso, mediante acordo ou convenção coletiva, e que frequentam cursos de qualificação profissional oferecido pelo empregador. Em 2001, as empregadas domésticas foram incorporadas ao universo de beneficiárias potenciais do seguro-desemprego.2. Dois anos mais tarde, em 2003, foi criado o seguro-desemprego para o trabalhador resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à do escravo.

Reconhecer os aludidos avanços não implica desconsiderar a pouca aderência do programa a um mercado de trabalho de perfil subdesenvolvido, onde persistem altos níveis de rotatividade e informalidade, desemprego estrutural e baixos salários. Conforme se apontou em outra ocasião, na comparação internacional, o seguro-desemprego brasileiro possui baixas taxas de cobertura e de reposição salarial, e, principalmente, uma curta duração, insuficiente para atender o desemprego de média e de longa duração (FERRAZ; OLIVEIRA, 2015).

No período recente, a manifestação de uma aparente contradição, qual seja, a ocorrência simultânea de baixas taxas de desemprego e crescimento do número de segurados e dos benefícios pagos pelo Seguro-desemprego, motivou sucessivas revisões das regras de acesso ao benefício com o objetivo de conter a ampliação dos gastos com o programa.

Nesse sentido, destacam-se as seguintes iniciativas: i) obrigatoriedade da participação do trabalhador desempregado em cursos de qualificação profissional5; ii) diminuição da taxa de reposição salarial, a partir da alteração da correção das faixas usadas para calcular o valor do benefício;6 iii) aumento do tempo mínimo de vínculo empregatício exigido para o primeiro e o segundo acessos ao seguro-desemprego7 (FERRAZ; OLIVEIRA, 2015).

Salientou-se que a contradição entre baixas taxas de desemprego e crescimento dos gastos com o seguro-desemprego é somente aparente. Convém explicitar o porquê. Em primeiro lugar, é preciso entender a natureza do fenômeno da queda das taxas de desemprego no período recente. Este indicador é uma razão entre o número de desempregados, no numerador, e a população economicamente ativa, no denominador. Portanto, o seu comportamento pode ser resultado de um aumento (ou diminuição) do número de desempregados, da população economicamente ativa, ou de ambos os movimentos. Assim, uma análise mais cuidadosa das estatísticas de mercado de trabalho indica que as menores taxas de desemprego apresentadas pelo mercado de trabalho brasileiro nos anos mais recentes devem-se não tanto a uma ampliação da ocupação (que cresceu a taxas menores pós-crise de 2008), mas sim a uma queda da população economicamente ativa, ou seja, da taxa de participação.

Em segundo lugar, cumpre chamar a atenção para o fato de que as menores taxas de desemprego vieram acompanhadas por um crescimento espetacular dos vínculos empregatícios formais no mercado de trabalho. De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), desde o início da década passada, houve uma incorporação no mercado de trabalho formal brasileiro de aproximadamente 20 milhões de pessoas, alcançando a marca de quase 40 milhões de vínculos celetistas ativos em 2014 (Ver Gráfico 1 abaixo). A informalidade, por seu turno, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), regrediu, no mesmo intervalo de tempo, de algo em torno de 58,0% para aproximadamente 46,0%.6

Por outro lado, a taxa de rotatividade permaneceu alta no período em tela. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), tal taxa, desconsiderando os desligamentos motivados por falecimento, aposentadoria, transferência e demissão a pedido do trabalhador, foi estimada em 40,9% em 2003, contra 43,1% em 2014.

Ora, é sabido que o fato gerador primordial de exigibilidade para o seguro-desemprego é a demissão sem justa causa. A incorporação de uma parcela expressiva de trabalhadores no mercado de trabalho formal, associada à permanência de altas taxas de rotatividade e a uma política de valorização do salário mínimo (que serviu de base para o reajuste do valor do benefício até 2013), explicam, portanto, o aumento dos gastos com o Seguro-desemprego no período recente. Em outras palavras, foi o aumento do universo potencial de beneficiários que pressionou os gastos do programa, no lado das despesas, e não uma ocorrência generalizada de fraudes, hipótese muito aventada, mas que carece de maiores evidências factuais. O Gráfico 1 abaixo mostra que há uma relativa estabilidade nas relações entre segurados e emprego formal e entre segurados e demitidos sem justa causa entre 1995 e 2014.

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Posto isto, não há como ignorar que o FAT apresenta um desequilíbrio financeiro preocupante, ainda mais se se consideram as enormes lacunas que o sistema público de emprego ainda apresenta no Brasil. As razões para tanto devem ser buscadas, fundamentalmente, no lado das receitas que compõem o aludido fundo.

Os dados financeiros do FAT revelam que os recursos do PIS/Pasep nunca foram suficientes para cobrir os gastos com o Abono Salarial e o Seguro-desemprego, sendo sempre necessária a sua complementação com receitas financeiras próprias, provindas principalmente do patrimônio do FAT alocado no BNDES.

As receitas totais, porém, as quais, além do componente financeiro, são acrescidas de multas e juros e da receita de contribuições sindicais, sempre foram em montante adequado para financiar o Fundo, que teve aumento crescente de patrimônio até 2013. A partir de 1994, o FAT começou a perder parte expressiva das suas receitas, devido à criação do Fundo Social de Emergência (FSE), que depois se transformaria na Desvinculação de Receitas da União (DRU). Para que se tenha ideia mais precisa do impacto da DRU, estima-se que ela retirou do FAT, entre 1995 e 2014, cerca de R$ 150,0 bilhões em termos reais, dos quais R$ 60,0 bilhões seriam repassados para o BNDES, conforme estipulado em lei, devendo posteriormente render remuneração financeira anual igual a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP).

A perda de arrecadação com a DRU é, portanto, o principal fator da crise financeira do fundo. O PIS/Pasep é uma contribuição para fins específicos e não deveria ter seus recursos dirigidos para outras finalidades. Não é possível saber a destinação dos recursos originariamente devidos ao fundo, mas pode-se imaginar que contribuíram duplamente para a composição do superávit primário, uma vez que a parcela destinada ao BNDES é contabilizada na dívida líquida do setor público.

Ademais, o FAT também vem perdendo expressivas somas de recursos devido às desonerações fiscais, que atingem diretamente a arrecadação proveniente do PIS/Pasep. Tais desonerações, vale dizer, tiveram um peso pequeno até 2003, quando passaram a crescer de forma substancial – cerca de 32% ao ano –, passando de R$ 930 milhões naquele ano, para R$ 11,6 bilhões em 2014 (Tabela 1). A partir de 2008, as desonerações com o PIS-Pasep passaram a equivaler a uma nova DRU por ano, ampliando a frustração de receitas do FAT.

O valor desonerado, desde 2003, passa dos R$ 74,0 bilhões, sem contar a receita com a remuneração financeira dos recursos incorporados ao patrimônio do fundo. A Tabela 1 traz os grandes números da desoneração. Os dez grupos destacados respondem por cerca de 97,0% do valor desonerado. É importante ressaltar que boa parte dos grupos desonerados, com destaque para as empresas do Simples, respondem por grande parte dos gastos com o seguro-desemprego.

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Em suma, o crescimento dos gastos com o Programa Seguro-desemprego acompanhou o processo de formalização do mercado de trabalho brasileiro. Desta forma, a formalização estendeu direitos vinculados à “carteira de trabalho” a um enorme contingente de trabalhadores pouco protegidos socialmente. Por outro lado, o FAT vem sendo privado ano a ano dos recursos que lhes são de direito, combalindo a sua capacidade de financiamento das ações do sistema público de emprego, justamente quando esses direitos estão sendo expandidos. Tal situação pode se agravar a partir deste ano, com a alta acelerada das taxas de desemprego.

As mudanças recentes nas regras de acesso ao seguro-desemprego tiveram como mote apenas preocupações de ordem fiscal. Tal programa contudo, quando devidamente estruturado, é importante por pelo menos três razões: atua como estabilizador automático dos ciclos econômicos, ao repor uma parcela da renda do trabalhador demitido; permite a especialização da mão de obra, a retenção de competências e o aumento da produtividade do trabalho; e influencia o

estabelecimento de um piso salarial no mercado de trabalho, dificultando abertura muito expressiva do leque salarial.

Iniciativas que visassem a uma maior integração das ações do sistema público de emprego, notadamente o seguro-desemprego, a intermediação de mão de obra e a qualificação profissional, aumentariam a eficácia, a eficiência e a efetividade do sistema, ao tempo que inibiriam as práticas fraudulentas. Na ótica dos trabalhadores e das organizações que os representam, o caminho desejado para o FAT é o do fortalecimento do fundo, com o fim do alcance da DRU sobre os recursos do PIS/Pasep e uma compensação pela perda de recursos com as desonerações, quiçá sua completa revisão.

O desafio das políticas de mercado de trabalho a partir da recomposição financeira do fundo é o de aperfeiçoar os instrumentos de política ativa, como a intermediação de mão de obra e a qualificação profissional, e sua integração com as demais políticas, ditas passivas. Estas devem ter a devida sustentação financeira para suportar novos avanços na formalização das relações de trabalho – ainda muito baixa para os padrões internacionais –, amparando o desemprego de longa duração, e vir acompanhadas de medidas que efetivamente combatam os altos níveis de rotatividade ainda presentes no mercado de trabalho brasileiro.

NOTAS

1 Houve tentativas anteriores de implementação de um seguro-desemprego no país. A primeira delas foi em 1965, a partir da Lei nº 4.923/65, não obstante a Constituição de 1946 já previsse uma assistência ao trabalhador desempregado.

2 Inicialmente, o pagamento do benefício estava condicionado ao recolhimento do FGTS por parte do empregador. A partir da publicação da Lei Complementar nº 150/2015 e da sua posterior regulamentação pelo Codefat (Conselho Deliberativo do FAT), o recebimento do benefício não mais depende desta condicionalidade, ainda que não tenha sido equiparado ao seguro-desemprego recebido pelo trabalhador dispensado sem justa causa.

3 Em 2012, tal exigência abrangeu os trabalhadores que requereram o benefício pela terceira vez, e, em 2014, estendeu-se esta obrigatoriedade para aqueles que requereram o seguro já na segunda vez. A esse respeito, ver a Lei nº 12.513/2011, regulada pelo Decreto nº 7.721/2012 e o Decreto nº 8.118/2013.

4 Optou-se pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) em substituição a um reajuste equivalente ao do salário mínimo. Ver Resolução do Codefat nº 707 de 10 janeiro de 2013.

5 Para o primeiro acesso, a exigência passou de um mínimo de 6, para 12 meses. Já no segundo, passou de 6, para 9 meses. Ver Lei nº 13.134/2015.

6 A taxa de informalidade aqui considerada é expressa pela seguinte relação: (empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria) / (trabalhadores protegidos + empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria). Informação obtida no Ipeadata.

Bibliografia

DELGADO, Guilherme: JACCOUD, Luciana; NOGUEIRA, Roberto. Seguridade social: redefinindo o alcance da cidadania. Políticas Sociais – Acompanhamento e análise. BRASILA: Ipea, 17, vol. 1, 2009.

FERRAZ, Alexandre; OLIVEIRA, Tiago. Mercado de Trabalho e Programa Seguro-desemprego: Uma Análise Comparativa entre o Brasil e Países Selecionados da OCDE. XIV Encontro Nacional da ABET. Campinas. Anais ABET, 2015.

* – Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP.
** – Doutor em Ciência Política pela FFLCH/USP.