Regime de metas de inflação: algumas lições da revisão do “Novo Consenso”

Luiz Fernando de Paula* e Paulo José Saraiva**

Atualmente, 27 países desenvolvidos e emergentes adotam o regime de metas de inflação (RMI) como a principal referência para a condução da política econômica, sendo este número ainda maior, quando considerados os países que utilizam alguma variante deste modelo, como os EUA, por exemplo. Este regime é visto como o “estado da arte” da teoria monetária do que se tornou conhecido como Novo Consenso Macroeconômico (NCM) entre os economistas do mainstream. A partir da crise de 2007-2008 foi parcialmente revisto pelos mesmos economistas, gerando divergências em relação à recomendação de políticas econômicas pós-crise. Contudo, apesar de nenhuma mudança substancial ter sido proposta, alguns ajustes pontuais vêm sendo apresentados, particularmente em uma perspectiva de maior flexibilização na condução do RMI.

Por um lado, a manutenção da essência do modelo do NCM pela revisão dos economistas do mainstream se deve a preservação de elementos teóricos basilares tais como as hipóteses de que “a inflação é um fenômeno monetário”, a economia caminha para uma taxa natural de desemprego e não existe trade off de longo prazo entre inflação e desemprego (a chamada “dicotomia clássica”). Como consequência, permanece a visão de que o objetivo principal da política econômica deve ser a manutenção e estabilidade de baixas taxas de inflação, além da redução das flutuações do produto em torno de sua tendência de longo prazo, reafirmando o RMI.

Por outro, a recente crise e a utilização de um amplo conjunto de políticas não convencionais nos países desenvolvidos demonstraram que a estabilidade de preços não garante a estabilidade do produto (divina coincidência). Como consequência, novos objetivos e instrumentos de política são propostos, tanto para os períodos de normalidade, quando para as situações de exceção (Blinder, 2010).

O ponto de partida para esta discussão é o período que antecede a crise financeira de 2007/08, cunhado por alguns economistas como a grande moderação (baixa inflação e crescimento econômico elevado). No campo teórico do NCM, foi amplamente aceita a hipótese da existência de rigidez de preços e salários no curto prazo, dando a possibilidade de manipulação da demanda pela autoridade monetária. Já a ocorrência de fricções financeiras entre os agentes era suposta inexistente ou pouco significativa, em termos de impactos macroeconômicos. Neste contexto, a política monetária deveria reduzir a volatilidade da inflação e com isso reduziria a volatilidade do produto tornado mais suave o caminho da economia em direção à taxa natural de desemprego.

Para tanto, a operacionalização do regime de metas se processava mediante o manejo da taxa de juros de curto prazo e da comunicação do BC com o público, impactando sobre as metas intermediárias (taxas de juros de longo prazo e as expectativas dos agentes) e deste modo a demanda agregada e o objetivo final do cumprimento de uma meta de inflação. Quanto ao efeito desta política sobre os preços dos ativos era suposto que estes se moveriam de forma previsível e estável às alterações na taxa de juros. Ressalta-se que em uma situação de anomalia, ou seja, de taxa de juros próxima de zero, supunha-se que o BC poderia afetar as taxas de juros de longo prazo por meio da “orientação para a frente da política monetária” (comunicação com público acerca das medidas a serem tomadas).

Contudo, a crise recente demonstrou que durante um período de aparente estabilidade econômica emergia um processo de ampliação da alavancagem de crédito e da exposição ao risco nos mercados financeiros. Na contramão da suposta calmaria, vinha se desenvolvendo um forte movimento especulativo no mercado financeiro norte-americano, particularmente no mercado de hipoteca, cuja inter-relação com os demais mercados gerou uma crise sistêmica com proporções similares às da crise de 1929. Como resultado imediato, políticas não convencionais foram necessárias e implantadas em grande magnitude para amenizar e reverter os impactos sistêmicos da ruptura financeira e da recessão na atividade economia. A crise obrigou o NCM a rever algumas de suas hipóteses e proposições de política econômica.

Um ponto importante desta revisão foi a aceitação de que as fricções financeiras podem gerar resultados macroeconômicos significativos e indesejados. Como consequência, diversos revisores do NCM (Blanchard et al, 2010; 2013; Mishkin, 2012; Yellen, 2011; Woodford, 2012; entre outros) têm defendido a introdução de políticas financeiras ao escopo da política monetária para mitigar o risco de crises financeiras. A operacionalização da política monetária passa a incluir o canal de gerenciamento de risco, além da manutenção do canal de juros por meio das operações de mercado aberto e da comunicação. Deste modo, é acrescida a preocupação com o nível de alavancagem financeira, conectando a política monetária aos preços dos ativos. Esta nova configuração passa a representar uma “nova normalidade”, na medida em que a revisão do NCM identifica a necessidade de utilização de novos instrumentos e políticas, parar mitigar a ocorrência de rupturas no comportamento dos agentes econômicos.

As políticas de balanço (medidas que objetivam influenciar as decisões de balanço dos agentes, afetando a taxa de juros de longo prazo e o nível de atividade econômica, por meio de outros instrumentos que não a taxa de juros de curto prazo, tais como a compra de títulos públicos e empréstimos às instituições financeiras) e sinalização adquirem o papel de políticas monetárias não convencionais adequadas para os períodos de anormalidade (Williams, 2011). Estas medidas tiveram no passado a sua sustentação teórica, em boa medida, referenciada em autores declaradamente críticos aos pressupostos que viriam a ser absorvidos pelo NCM, tais como Tobin e Modigliani, no que se refere à hipótese de mercados eficientes (Tobin, 1969; Ando e Modigliani, 1963) e da estrutura a termo da taxa de juros (Modigliani e Sutch, 1966). Contudo, estas políticas tornam-se inadequadas para os períodos normais, embora eficientes para lidar com situações de crise (anormalidade), quando a taxa de juros se aproxima de zero ou em uma situação de armadilha de liquidez.

A adoção de políticas monetárias não convencionais, os impactos sistêmicos da crise recente e a revisão do NCM têm como implicação para a condução da política monetária uma maior flexibilização do RMI em relação aos objetivos (inflação, estabilidade financeira, emprego), aos instrumentos (taxa de juros, comunicação, gerenciamento de risco, etc.), bem como a interação com outras políticas (políticas financeiras e controle de capitais), embora a estabilidade de preços permaneça como objetivo central. Curiosamente tais iniciativas em boa medida já vinham sendo implementadas por diversos países, antes mesmo da crise recente.

Em versões mais flexíveis do regime de metas, o objetivo de estabilidade de preços pode ser acompanhado pelo compromisso de manter a estabilização do produto em níveis próximos da taxa potencial de crescimento, mas somente naquelas condições em que a estabilidade de preços não seja violada. De fato, em muitos países a lei que rege o BC estabelece, como objetivo subsidiário, que esta instituição dará suporte a prosperidade econômica e ao bem-estar social: BC da Austrália (assim como o FED nos EUA) tem duplo mandato – estabilidade de preços e emprego –, enquanto o BC do Canadá tem como objetivo promover o bem-estar econômico e financeiro do país. A partir da crise financeira, vários BCs, incluindo o Banco da Inglaterra, passaram a incluir a estabilidade financeira entre seus objetivos, antes relegada a regulação microprudencial.

Na maioria dos países que adotaram o RMI (15 em 27, incluindo o Brasil) a meta de inflação é estabelecida conjuntamente entre o governo e o BC, seguido de nove países em que é o BC que define a meta (a maioria está na América Latina e na Europa do Leste), sendo que em apenas três países (África do Sul, Noruega e Reino Unido) cabe ao governo esta tarefa. Quanto à definição do horizonte da meta – período no qual se espera que o BC alcance sua meta de inflação –, a maioria dos países utiliza prazo médio (dois anos ou mais ou período móvel) que permite divergências de curto prazo entre a meta e os choques que afetam a economia, já que choques não previsíveis têm efeitos defasados na economia. Deve ser destacado que o Brasil, neste particular, é um dos poucos países que utilizam a meta anual (ano calendário) como horizonte da meta.

Ademais, existe um grande número de estudos pré e pós-crise que comparam a performance de países que adotam o RMI com países que não o adotam. Os estudos empíricos, de modo geral, não são conclusivos em encontrar evidências de que os países emergentes que adotam RMI têm performance melhor em termos de maior crescimento econômico e menor inflação, que os países que não adotam (Ball e Sheridan, 2003; Angeriz e Arestis, 2006). Outros estudos mostram haver forte evidência de fortes impactos dos choques externos e da política monetária dos países desenvolvidos sobre a estabilidade financeira doméstica das economias emergentes.

Finalmente se deve destacar que o Brasil aderiu ao RMI em 1999, na sequência do fim da âncora cambial do Plano Real. Contudo, a gestão do regime pelo Banco Central – em parte em função de um passado de alta inflação e apesar das lições da crise recente – ainda se inspira na visão do “novo consenso” que antecede à crise americana, preservando uma versão mais rígida do RMI (foco na inflação de curto prazo e em detrimento de outras variáveis macroeconômicas).

Como resultado, o regime se torna um dos três pilares da política macroeconômica, conjuntamente com o câmbio flutuante e o rigor fiscal. Deste modo, a política monetária brasileira guiada pelo RMI transforma o controle inflacionário em objetivo primordial da política econômica conduzida pela autoridade monetária, ainda que a um custo significativo em termos de produto.

Quatro lições podem ser extraídas de nossa análise da manutenção de um modelo rígido de RMI no Brasil, em que pesem as revisões em curso no debate sobre política monetária. Em primeiro lugar, o Brasil é um dos poucos países que apresenta uma meta anual (ano calendário) como horizonte da meta de inflação. Assim, ante choques de oferta (agrícola, petróleo, etc.), o BC tem que responder imediatamente a tais choques, tendo em vista a prevalência de um horizonte curto para cumprimento da meta.

Em segundo lugar, a restrição de meta única de estabilidade de preços, e ausência de outros objetivos para a política monetária, tais como bem-estar econômico, baixo desemprego e estabilidade financeira, pode subutilizar a política econômica para alcançar objetivos econômicos mais amplos.

Em terceiro, estudos empíricos, de modo geral, não são conclusivos quanto a evidências de que os países emergentes que adotam o RMI tenham performance melhor, além de estarem mais suscetível aos impactos dos choques externos sobre a estabilidade financeira doméstica, o que levanta a discussão a respeito de quais regimes de política econômica são mais adequados para sustentar um crescimento econômico robusto compatível com a estabilidade financeira e de preços.

Por último, a efetividade das políticas monetárias não convencionais em diversos países suscita a possibilidade de outros instrumentos serem conjugados com a política monetária convencional de taxa de juros.

Referências:

ANDO, A. e MODIGLIANI, F. (1963). “The “life-cycle” hypothesis of saving: aggregate implications and tests”. American Economic Review, v. 53, n. 1, p. 55–84.
ANGERIZ, A. e ARESTIS, P. (2006).. “Has inflation targeting had any impact on inflation?” Journal of Post Keynesian Economics, v.28, n.4, p. 559-571.
BALL, L. e SHERIDAN, N. (2003).“Does Inflation Targeting Matter?” NBER Working Paper Series no. 9577.
BERNANKE, B. (2012). “Monetary policy since the onset of the crisis”. The Federal Reserve Bank de Kansas City Economic Symposium, Jackson Hole, Wyoming, 31 agosto.
BLANCHARD, O.; DELL’ARICCIA, M e MAURO, P. (2010).“Rethinking macroeconomic policy”. Journal of Money, Credit and Banking, v. 42, n. 6, p. 199-215.
BLANCHARD, O.; DELL’ARICCIA, M. e MAURO, P. (2013) “Rethinking Macro Policy II: Getting Granular” IMF Staff Discussion Note, abril, p. 199-215, 2013.
BLINDER, A. (2010). “Quantitative easing: entrance and exit strategies”. FederalReserve Banks St Louis Review, novembro/dezembro, p. 465-480.
MODIGLIANI, F. e SUTCH, R. (1966). “Innovations in Interest-Rate Policy”. American Economic Review, v. 56, n. 1, p. 178-197.
TOBIN, J. (1969). “A General Equilibrium Approach to Monetary Theory”. Journal of Money Credit, and Banking, v.1, no.1, p. 15-29.
MISHKIN, F. (2012). “Central Banking After the Crisis”. Paper prepared for the 16th Annual Conference of the Central Bank of Chile, Santiago, Chile, Novembro.
WILLIAMS, J. (2011). “Unconventional Monetary Policy: Lessons from the Past Three Years”. Presentation to the Swiss National Bank Research Conference Zurich, September 23.
WOODFORD, M. (2012). “Inflation targeting and financial stability”. Sveriges Riks Bank Economic Review 2012-1, p.9-32.
YELLEN, J. (2011). “The Federal Reserve’s Asset Purchase Program,” Speech at the Brimmer Policy Forum, Allied Social Science Associations Annual Meeting, Denver, Colorado January 8.

* – Professor Titular de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pesquisador do CNPq.

** – Professor Assistente do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).