Guilherme Santos Mello*
A discussão acerca dos defeitos e qualidades dos diferentes regimes macroeconômicos não é propriamente nova. Diante da multiplicidade de escolas econômicas surgidas ou desenvolvidas ao longo do século XX, a concertação de diferentes propostas de regimes macroeconômicos suscitou intermináveis debates acerca da melhor combinação de políticas para alcançar objetivos tão dispares quanto crescimento econômico, estabilidade de preços, higidez financeira e distribuição de renda e riqueza. As diferentes escolas do pensamento econômico, ao longo deste período, buscaram demonstrar teórica e empiricamente a superioridade de suas postulações, mesmo que as mais abstratas, como forma de gerir a moderna economia capitalista.
Não é possível tirar-se conclusão única e definitiva acerca do melhor conjunto de políticas até hoje desenvolvido para gerir a economia capitalista, pelo simples motivo de que o capitalismo, como forma de produção, gestão e distribuição da riqueza, é ele mesmo uma realidade múltipla e multifacetada (BRITTON, 2001). Ao longo de sua história, o capitalismo transformou-se mais de uma vez, dando origem a termos como “capitalismo monopolista”, “capitalismo financeiro” e “capitalismo regulado”, que buscam captar as alterações na forma do capital e sua regulação.
Do ponto de vista concreto, as diferenças entre os países capitalistas e suas instituições impedem a adoção de uma política única para todos os casos. A própria noção de centro-periferia presente na literatura econômica a partir da década de 1950 (particularmente a partir dos estudos da Cepal) criou uma clivagem fundamental entre países que adotam o sistema capitalista de produção, da mesma forma que a ascensão e queda do welfare state criaram realidades histórico-institucionais absolutamente distintas entre os diferentes países que o adotaram.
Historicamente, podemos falar de ao menos três grandes regimes macroeconômicos no pós-guerra:1
• O primeiro, adotado ao longo dos anos dourados do capitalismo, ficou conhecido como “economic management” e prevaleceu até a crise da década de 1970 (TAYLOR, 2011). Neste regime, o objetivo central das políticas era a obtenção do máximo de emprego, se valendo para isso de um regime de câmbio fixo, porém ajustável (característico do acordo de Bretton-Woods), política fiscal expansionista e política monetária acomodatícia.2.
• Imediatamente após o colapso de Bretton-Woods em 1973, a crise do welfare state e de seu modo de regulação (que incluía o regime macroeconômico anteriormente descrito), ganham força as políticas de cunho neoliberal – inicialmente comandadas pela ofensiva monetarista contra as práticas “heterodoxas” do economic management. Tais políticas tinham como objetivo central o controle da emissão monetária (através de seus agregados quantitativos), a redução da inflação e do papel do Estado no processo econômico, através de uma política fiscal restritiva.
• Após o fracasso da experiência monetarista, em particular no que tange ao prometido e não realizado crescimento econômico e ao retorno dos problemas de concentração de renda e riqueza, a ascensão do “consenso macroeconômico” da década de 1990 prometia por um fim ao debate acerca do modelo ideal e das ferramentas mais eficazes na gestão dos ciclos econômicos capitalistas. Fundada sobre o que havia de mais “moderno” na teoria econômica neoclássica (a ideia de expectativas racionais), o novo consenso macroeconômico apostava em uma política de gerenciamento das expectativas inflacionárias, câmbio flutuante (em vista das crises cambiais recentes, inclusive do Sistema Monetário Europeu, decorrentes da liberdade dos fluxos de capitais) e política fiscal restritiva, com o objetivo de limitar a expansão do emprego e do produto a sua taxa de crescimento “natural”.
Como qualquer regime macroeconômico que se pretende definitivo, o consenso da década de 1990 estava fadado ao fracasso desde o surgimento. A ideia de um regime macroeconômico capaz de superar a instabilidade intrínseca do capitalismo esbarra nas transmutações econômicas, culturais, institucionais e sociais que o regime capitalista apresenta ao longo de sua história.
Do ponto de vista nacional, as diferentes instituições afetam de maneira decisiva a exequibilidade e efetividade das recomendações econômicas do consenso, espalhadas urbi et orbi pelos países centrais, em suas universidades e organismos multilaterais.
Do ponto de vista internacional, as mudanças nos padrões de comércio, circulação de bens, serviços, informações, pessoas e capital, altera o pano de fundo sob a qual atuam as políticas macro, tornando-as inadequadas conforme o cenário se altera.
Desta forma, não foi nenhuma surpresa a debacle do “novo consenso macroeconômico” verificada pela crise financeira de 2008, mas já prenunciada em crises anteriores (como a dos países periféricos, 3 a longa prostração japonesa e a bolha das empresas de tecnologia nos EUA).
A ascensão de novos atores institucionais, como os grandes fundos de pensão e os fundos de hedge, novos instrumentos financeiros tais como os derivativos e os produtos estruturados e novos países centrais, como é o evidente caso da China, alteraram profundamente o cenário do capitalismo internacional, tornando qualquer aspiração de perpetuidade do regime macroeconômico neoliberal uma mera ilusão pronta para ser desmascarada.
Desta feita, a crise de 2008 trouxe para o paradigma macroeconômico dominante uma série de questionamentos que o paradigma não pode responder a contento utilizando-se tão somente de sua base conceitual e institucional.
As próprias questões com que os policy makers se deparam hoje são bastante distintas das que existiam nos anos 90: em vez de conter viés inflacionário, a questão é como conter o viés deflacionário; em vez de como incentivar o crescimento, a questão é como sair da recessão; em vez de saber a taxa máxima de crescimento do emprego para não gerar inflação, a questão agora é como sair da profunda crise de desemprego estrutural em que algumas as principais economias do mundo ainda se encontram.
É necessário, portanto, se valer das experiências bem sucedidas de superação da crise econômica, sejam elas de cunho ortodoxo ou heterodoxo e, a partir daí, concatenar uma interpretação acerca da nova realidade do capitalismo internacional surgida após a crise, para desta forma especular sobre quais são as melhores ferramentas para gerir os ciclos econômicos neste novo cenário mundial.
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer a eficácia limitada da política monetária como instrumento de superação da crise e soerguimento das debilitadas economias nacionais. Tal conclusão já era prenunciada pelo caso japonês, que após uma crise na década de 1990 nunca mais conseguiu recuperar seu vigor econômico, apesar de diversas tentativas de utilizar política monetária expansionista para tal fim.
Apesar de o caso americano (com a adoção do quantitative easing) poder opor-se parcialmente a esta conclusão, parece evidente que mesmo neste caso a política monetária, usada de forma completamente heterodoxa e fora dos padrões de intervenção monetária tradicionais ao consenso anterior, foi capaz apenas de minimizar os efeitos devastadores da crise, sem criar um ambiente de investimento que permita o crescimento sustentado do produto, do emprego, da produção e da renda. A recuperação em voga parece muito mais avançada no balanço das empresas e bancos do que no balanço das famílias, cada vez mais dependentes de empregos parciais, com menores salários e menos direitos.
Outra conclusão fundamental que é possível depreender das crises pela qual passou o capitalismo na década de 1990 e agora é que a política de câmbio fixo, inviabilizada pela grande circulação de capital especulativo pelos mercados financeiros internacionais, não pode nem deve ser substituída por uma política de câmbio plenamente flutuante, particularmente no caso de países com moeda fraca como o Brasil.
A ideia de gestão cambial (na forma de dirty floating ou peg cambial), utilizada com enorme sucesso pela China, talvez não seja possível em todos os países da mesma forma, mas certamente retoma a importância central da taxa de câmbio no processo de desenvolvimento econômico.
Tal centralidade está mais do que nunca evidenciada por casos como o brasileiro, onde a valorização cambial continuada dentro de um cenário de flutuação “livre” do câmbio precipitou um processo de desarticulação das cadeias industriais.
A gestão cambial em um mundo de ampla mobilidade de capitais exige, dentre outros fatores, a acumulação de divisa forte, a manutenção de uma balança de pagamentos superavitária e a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva para a maior parte dos setores produtivos, tendo em vista o completo desarranjo da economia internacional no que diz respeito à competição e aos preços relativos. Para alcançar estes objetivos, o debate sobre controle de fluxos de capitais deve ser desinterditado de uma vez por todas.
Por fim, a política fiscal também volta ao centro do debate diante da incapacidade da política monetária de dar conta da recuperação econômica. Em recente publicação, até o conservador FMI (FMI, 2014) admitiu a necessidade e os efeitos positivos de gastos públicos em infraestrutura, fato que era ao menos negligenciado ao longo dos últimos anos dado o foco na gestão fiscal recessiva. O exemplo europeu talvez seja decisivo na avaliação da política fiscal em economias maduras e de baixo crescimento: a tentativa de adotarem-se superávits fiscais via corte no orçamento público aprofunda a crise em voga, elevando o desemprego, baixando a renda e os salários e, desta forma, afetando negativamente a arrecadação, que por sua vez gera novos problemas fiscais. O ciclo de ajuste fiscal não tem fim, levando cada vez mais as economias europeias a uma crise econômica e social, em vez de criar as condições para superação desta.
Dentro deste cenário, o caso brasileiro é bastante particular. Após o processo de estabilização monetária do plano Real,4 o país passou anos seguindo o famoso “tripé macroeconômico”, ou seja, baseando sua política econômica no consenso macro da década de 90. Os resultados da adoção do tripé macro são de difícil interpretação, tendo em vista que o crescimento e o controle inflacionário do período tanto podem ser atribuídos à adoção de políticas macroeconômicas internas quanto a mudanças no cenário internacional.5
Mais que isso, nem todas dentre as políticas internas dizem respeito ao tripé macroeconômico, como a elevação do salário mínimo acima da inflação, a distribuição de renda a partir da elevação dos gastos sociais ou mesmo a ampliação do crédito através da atuação de bancos públicos e privados.
Ao que parece, o desempenho do Brasil com a adoção do tripé macroeconômico não foi superior a outros países que se utilizaram de outro conjunto de políticas macro (DE PAULA, 2014), mas também não pode ser considerado um fracasso, tendo em vista a manutenção da inflação em patamares historicamente baixos e o crescimento da renda e da riqueza no país.
Com o advento da crise, o Brasil se utilizou de instrumentos pouco ortodoxos de política econômica para superá-la, como a ampliação do crédito subsidiado pelos bancos públicos, o aumento dos gastos públicos (em particular em infraestrutura e políticas sociais) e a concessão de incentivos ao consumo. Após o absoluto sucesso de sua estratégia de superação da crise em 2010, o país voltou a apostar no tripé macroeconômico e no recrudescimento do aperto fiscal como forma de reduzir as expectativas inflacionárias e a taxa de juros.
Esta aposta levou a uma profunda desaceleração econômica no ano de 2011, que não foi revertida nos anos posteriores, mesmo com a adoção de políticas de incentivo à oferta, como as desonerações fiscais e substituições tributárias de impostos sobre a folha de pagamento para impostos sobre o faturamento.
Ao mesmo tempo, a partir do ano de 2012 viu-se uma tentativa de flexibilização do tripé macroeconômico, seja através do abatimento crescente das metas de superávit primário para permitir o aumento do investimento público, seja através de intervenções no mercado cambial para não permitir novas rodas de valorização da moeda que tanto prejudicam o parque produtivo nacional.
Esta tentativa, que ficou conhecida como “nova matriz macroeconômica”, na realidade não possuía um conjunto claro de políticas e uma estratégia conjunta, sendo mais uma tentativa de utilizar instrumentos de gestão macroeconômicos, como alguns controles no mercado de câmbio, com o objetivo de impedir sua tendência cíclica à valorização (BRESSER PEREIRA, 2010), e medidas macroprudenciais de controle de crédito para limitar a inflação.
O período em que vigorou esta tentativa de flexibilização do arranjo macro coincidiu com um recrudescimento da crise internacional (particularmente na Europa), com uma piora acentuada no quadro econômico de alguns dos principais parceiros comerciais brasileiros (como é o caso argentino e, em menor escala, chinês) e com um movimento poderoso de resistência dos mercados financeiros e de grupos empresariais a mudanças no regime macroeconômico.
Este quadro adverso e a curta duração da experiência de flexibilização impedem qualquer análise imparcial acerca de seu sucesso, mas apontam para a evidente dificuldade política de vislumbrar uma alternativa econômica para enfrentar o desafiador novo cenário econômico internacional.
Enquanto diversos países do mundo mandam às favas quaisquer pudores monetaristas ou ortodoxos, os empresários e investidores brasileiros clamam pelo retorno ao regime macroeconômico da década de 1990, que colapsou com a crise internacional e não apresenta sinais de que seja capaz de fazer reativar qualquer economia no mundo. O soerguimento de uma nova ordem mundial, onde a incerteza financeira permanece sendo o principal desafio a ser superado conjuntamente com a escassez estrutural de demanda (WOLF, 2014), parece prenunciar a ineficácia das velhas estratégias de desenvolvimento liberal e das antigas ferramentas de gestão macroeconômicas.
A ascensão definitiva da China como principal fornecedor mundial e a luta aberta pelos mercados consumidores externos (uma vez que os EUA abandonaram sua função de consumidor de última instância) apresentam um cenário complexo de inserção da economia brasileira na economia global, onde o risco de perda da capacidade produtiva é evidente no caso de tentativas de competição aberta com os produtos estrangeiros.
A necessidade de reconstituição do tecido industrial é consensual entre a maior parte dos economistas, mas a crença de que políticas livre-mercadistas e/ou de incentivos a redução nos custos de oferta sejam capazes de concretizar tal objetivo soam naive frente ao tamanho do desafio que impõe a conjuntura internacional desregulada.
Apesar da evidente necessidade de encontrar novos caminhos (inclusive macroeconômicos) para o prosseguimento e aprofundamento do projeto de desenvolvimento com distribuição de renda inaugurado nos anos 2000, parece que a realidade política brasileira gostaria de nos levar de volta aos anos 1990.
Diante das crescentes resistências políticas, dos resultados econômicos pouco efetivos (seja por razões ligadas ou não à política econômica interna) e do recrudescimento das dificuldades causas pelo baixo crescimento do período (principalmente em relação às finanças públicas e ao saldo em transações correntes), o ensaio de flexibilização do regime macroeconômico tradicional parece ter sido abortado pelo novo governo Dilma.
A opção política pelo retorno ao tripé macroeconômico puro, mesmo que ocorra de forma gradual, parece indicar a vitória dos derrotados nas urnas, daqueles que apostam que a simples manutenção da inflação em patamares baixos (independente de seus evidentes custos sociais) é suficiente para incentivar os empresários a promover investimentos e alavancar o crescimento econômico.
O fato de boa parte dos empresários brasileiros defenderem estas políticas recessivas e cada vez mais abandonadas nos países desenvolvidos diz muito sobre as características do atual empresário brasileiro, que para se adequar à crescente perda de competitividade de seus produtos (dados os juros elevados e o cambio valorizado que vigoraram durante quase todo o período do tripé macro) tornou-se basicamente importador/especulador, que tem seus interesses absolutamente dissociados daqueles que, em tese, poderiam comandar o verdadeiro desenvolvimento econômico e social do país.
É necessário, portanto, compreender quem são as atuais forças produtivas nacionais antes de prescrever novas políticas macroeconômicas que supõem que nossos investidores (financeiros ou não) se comportem de maneira similar ao que se encontra nos manuais de macroeconomia.
* – Guilherme Santos Mello* é professor da Facamp e pesquisador do Cecon/IE – Unicamp.
Bibliografia:
AGLIETTA, M. (2004) Macroeconomia financeira, Vol. 1 e 2. São Paulo, Edições Loyola, 2004.
BRESSER PEREIRA, L.C. (2010) Taxa de câmbio, doença holandesa, e industrialização. Cadernos FGV Projetos, 5 (14) 2010: 68‐73.
BRITTON, A. (2001) Monetary Regimes of the Twentieth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. xii; 244 pp
IMF (2014). World Economic Outlook: Legacies, Clouds, Uncertanties. IMF Press, October 2014.
DE PAULA, L.F. (2014) Uma avaliação do regime de metas de inflação. Brasil Debate, disponível em http://jornalggn.com.br/blog/brasil-debate/uma-avaliacao-do-regime-de-metas-de-inflacao-por-luiz-fernando-de-paula
TAYLOR, C. (2011) A Macroeconomic Regime for the 21st Century. Routledge. 2011. Nova York, Routlegde 2011.
WOLF, Martin. (2014) Curas radicais para males econômicos incomuns. Folha de S. Paulo, 26 de novembro de 2014. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/martinwolf/2014/11/1553631-curas-radicais-para-males-economicos-incomuns.shtml
NOTAS:
1 Isso para não citar, evidentemente, o padrão ouro que prevaleceu até a primeira grande guerra e a posterior tentativa tardia de sua reabilitação nos anos 1930, que fracassou diante das alterações nas relações capitalistas daquele período.
2 Na realidade, este período foi marcado pela gestão monetária a partir de uma abordagem teórica wicksseliana, como esclarece Michel Aglietta em seu Macroeconomia financeira (AGLIETA, 2004). Tal regime se fundava em uma economia basicamente de crédito bancário, onde o controle da oferta monetária se dava através do estabelecimento das taxas de juros curtas, entendidas como o custo do acesso aos fundos emprestáveis.
3 Desde a crise mexicana de 1994, passando pela crise asiática em 1997, russa em 1998, brasileira em 1999 e argentina em 2000.
4 Do ponto de vista do referencial teórico de diagnóstico inflacionário, o plano real não deve ser considerado um plano meramente ortodoxo, sendo resultado de anos de debate acerca das peculiaridades da inflação brasileira e de seus possíveis “remédios”. Seu sucesso, além do mais, não deve ser creditado única e exclusivamente ao adequado manejo da política macroeconômica e do plano da “moeda indexada”, tendo de ser levado em consideração o ambiente internacional francamente favorável (do ponto de vista do fluxo de capitais) que o plano encontrou para sua efetivação. Provavelmente, o mesmo plano seria inviável na década de 1980, devido a absoluta escassez de financiamento externo para manter o projeto da âncora cambial.
5 Do ponto de vista internacional, chama atenção a ascensão da China e a produção em massa de manufaturados a preços módicos, o que contribuiu decisivamente para a manutenção de patamares baixos de inflação ao redor do globo.