Regionalização é o futuro do SUS

Entrevista original do site Região e Redes 

Gastão Wagner, professor do Instituto de Saúde Coletiva da FCM da Unicamp, é autor da proposta de tornar o SUS uma autarquia pública, organizada a partir das regiões de saúde. Nesta entrevista à Região e Redes ele detalha o funcionamento do que chama de “SUS Brasil”, apresenta perspectivas e limites à proposta que, segundo afirma, seria uma alternativa à privatização e ao Estado burocratizado atual. Para o pesquisador, o subfinanciamento da saúde pública é um entrave, mas não inviabiliza o novo modelo, cuja construção deve ser gradativa. O objetivo de sua proposta é enfrentar a grande fragmentação existente no SUS, uma barreira aos avanços de medidas que consideram as especificidades e necessidades em saúde de cada região do País.

Região e Redes – O senhor lançou a proposta de tornar o SUS uma autarquia pública – uma organização federal, estadual e municipal -, tendo como núcleo organizativo as regiões de saúde existentes (Jornal O Globo, 20/09/2013). Como funcionaria essa forma de organização e a gestão do sistema?

Gastão Wagner – Eu trabalho com a hipótese e constatação de que o modelo de gestão do SUS está esgotado e seu principal problema é a fragmentação. Essa proposta de autarquia seria de criar um SUS Brasil, ou seja, um Sistema Único que funcione com gestão tripartite. O ministro da saúde trabalharia em um planejamento nacional, com a representação dos municípios, como é hoje. Mas a base do planejamento seriam as regiões de saúde e não os municípios.

Essa autarquia precisaria ter certa autonomia do poder executivo, como as universidades públicas. O SUS autarquia teria gestão de co-participação de base regional. Teria uma política de pessoal unificada, com diretrizes nacionais, com carreiras nas grandes áreas temáticas do SUS, como atenção básica, atenção especializada hospitalar, vigilância à saúde, urgência e emergência, apoio administrativo e financeiro.

Os concursos seriam estaduais e os servidores poderiam em suas carreiras começar em uma cidade e passar para outra. Ir da periferia para o centro. Enfim, essa é a ideia.

Seria uma alternativa entre a privatização e o Estado burocratizado que temos hoje, criando legislação específica para a área da saúde, para as políticas de pessoal, licitações e manutenção, por exemplo.

Os recursos dessa autarquia seriam planejados em âmbitos regional, estadual e nacional. Políticas de medicamentos, de ciência e tecnologia, por exemplo, precisam ter uma dimensão nacional. Já a assistência, os serviços e hospitais seriam planejados de modo ascendente a partir das regiões.

RR – No que a sua proposta se diferencia do atual processo de organização e gestão regional do SUS?

GW – Nós estamos tentando enfrentar a fragmentação do SUS com uma legislação, que é a do Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde – COAP. É uma legislação de integração regional que se tiver êxito será no nível da planificação, mas a gestão continuará fragmentada. Existe atualmente no SUS uma proposta de gestão executiva regional. Na autarquia, eu proponho que exista um secretário regional de saúde, indicado pelos municípios e secretaria estadual, com perfil técnico, experiência de pelo menos três anos de SUS e formação em gestão pública e saúde pública.

A legislação atual não resolve o impasse da fragmentação entre os entes da federação, nem da fragmentação decorrente da relação público e privado existente entre hospitais e o SUS. Agora mais agravada com a terceirização da gestão da prestação de serviços através das organizações sociais. Vejo que estamos aumentando a fragmentação, apesar dos discursos de boa intenção de integração e unificação.

RR – De que maneira tornar o SUS uma autarquia pública, organizada a partir das regiões de saúde, ajuda a enfrentar os desafios e constrangimentos relacionados ao modelo federativo brasileiro?

GW – Em minha opinião, a autarquia superaria essa autonomia inoperante e exagerada. Só que os municípios teriam um modelo de deliberação. As tripartites, as bipartites, os conselhos regionais e os municípios teriam poder de veto. As decisões deverão ser tomadas por consenso e não por votação. Então, não contraria a Constituição porque o município será um dos poderes para tomar as decisões e fazer planejamento das regiões de saúde, do estado e mesmo do planejamento nacional do SUS. Ao mesmo tempo, a autarquia supera a fragmentação do cotidiano na gestão.

RR – Em que medida as desigualdades regionais que marcam o território brasileiro representam limitações para a execução da sua proposta? Ou seriam mais bem enfrentadas a partir daí?

GW – A ideia é um enfrentamento melhor a partir dessa proposta. Se metade do recurso for planejado regionalmente, a distribuição dos recursos estaduais e nacionais terá que considerar as necessidades regionais. Não tem que ser uma distribuição isonômica per capita. Por exemplo, onde falta hospital é preciso priorizar a construção de hospitais, centros de referência. Essa é a proposta para diminuir a iniquidade entre as regiões de saúde. É o que vai tornar possível adaptar o modelo de funcionamento do SUS, de atenção à saúde e cuidado às singularidades regionais. A região tem muito mais condições de regular essas especificidades.

RR – Tornar o SUS uma autarquia pública, organizada a partir das regiões de saúde, traria ganhos orçamentários para o sistema?

GW – Ganho orçamentário terá se considerarmos o uso racional dos recursos e segundo as prioridades. Nesse sentido sim. Mas não é uma proposta que vai custar mais barato. Ela vai é permitir um diagnóstico dos nossos entraves. Por exemplo, identificado que tais municípios não têm cobertura de atenção básica, então vamos investir mais nesses municípios para que tenha uma maior cobertura, de 60% ou 70%. Então, essa proposta permite esse uso racional.

Por outro lado, vai colocar em evidência o subfinanciamento. Será possível dizer: falta recurso aqui para enfrentar esse determinado problema.

RR – Essa proposta de criação de autarquia deveria ser implantada como um todo, de uma só vez, ou é possível pensar em uma política gradual e construtiva no sentido de construir esse modelo de gestão?

GW – Vai ter que ser construtiva. Nós temos que tomar algumas decisões gerais. Eu coloco a proposta de autarquia como uma provocação, mas o modelo organizacional não precisa ser esse. Nós precisamos é construir um modelo organizacional mais integrado. É preciso que haja também uma deliberação consensual única.

Poderia ser um consórcio? Sim, poderia. Mas se a adesão do município for livre nós vamos ficar como a federação público-privado do estado da Bahia, que acabou criando duas secretarias estaduais e uma concorre com a outra porque a adesão é livre.

Nós precisamos ter um movimento através do Conselho Nacional de Saúde. Não sei se será preciso mudar a Constituição, talvez alguns itens da lei orgânica. Enfim, temos que ter uma proposta muito forte, quase como tivemos com a oitava Conferência de Saúde. Não para reformar o sistema inteiro, mas para definir essa reorganização com uma ampla maioria. E a implementação disso tem de ser construtiva.

Esse decreto do COAP é um avanço, mas não vai conseguir superar a fragmentação, o uso irracional de recursos e a iniquidade. E as propostas de sistemas nacionais de saúde precisam ser mais articuladas. A integralidade é regional e aí precisa ter uma gestão unificada regional. As secretarias estaduais não podem fazer sozinhas, porque não vão ter autoridade. Por isso, penso nesse colegiado.

RR – Existe alguma experiência internacional que inspira sua proposta para o SUS?

GW – Não existe nenhum outro país com esse grau de fragmentação. Há outros sistemas públicos nacionais semelhantes ao SUS e em todos a unidade de planejamento e gestão é regional. O máximo de centralização que existe é, como na Espanha, para as comunidades autônomas. Como se fosse para os estados aqui. Não tem nenhum sistema público tão descentralizado por município.

Na Itália, a planificação é a partir das regiões. Essa ideia do secretário regional de saúde eu peguei da Itália. Os municípios não têm secretários de saúde. Os municípios se reúnem com o ministério da saúde e indicam o secretário regional de saúde de comum acordo, com perfil sanitário, com currículo e formação. Em geral, os mandatos desses secretários cruzam dois mandatos de prefeitos. Eles indicam no meio do mandato. Assim, vários partidos são obrigados a se entender e ter um projeto de saúde comum, junto com o ministério da saúde da nação.

RR – Que questões o senhor apontaria como sendo centrais para as futuras pesquisas sobre planejamento regional da saúde no Brasil?

GW – Financiamento estamos tendo, já que o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) priorizaram um recurso importante. Temos também o problema da metodologia. Para gerarmos propostas mais sistêmicas, precisamos agregar pesquisas mais verticais e pensar a política de saúde de novo. Devemos nos autorizar a usar metodologias históricas, metodologias de genealogia. Voltar ao que nós fazíamos. Hoje as investigações dessas áreas estão muito fragmentadas e perdemos um pouco a ideia da construção de políticas.

Alguém me jura que autarquia vai dar certo? Não, mas é uma dedução racional com base em evidências. Mas ainda assim é uma dedução. A nossa área – de ciência, política, gestão e planejamento – tem que se autorizar a fazer movimentos que um positivista tradicional diria que não é ciência.

Tudo com base em evidência, em necessidades de saúde e nos estrangulamentos estruturais e gerenciais sistêmicos que identificamos com base empírica. O empírico tem que nos ajudar a construir projetos concretos, que precisam ser testados. Por isso, acredito na construção progressiva para irmos modelando essa utopia. Por isso, baixar um pacote geral, como por decreto, é perigoso.

RR – Uma proposta de regionalização como essa já pode ser pensada no atual momento, mesmo com um crônico subfinanciamento do SUS ou precisa ser preparada para uma implementação de longo prazo?

GW – Se a gente deixar para pensar depois eu acho que vai demorar muito. Vou estar aposentado ou morto. Eu considero que temos alguns bloqueios estruturais que têm muita influência, como o subfinanciamento. E esse problema de gestão que temos é outro bloqueio, que se não vencermos não se avança. São interdependentes. Sem falar no bloqueio de gestão de pessoal, desde a formação, disponibilidade, carreira, motivação, avaliação e resultado. Temos que enfrentar os três campos ao mesmo tempo.

Com os recursos que já temos, se tivermos uma gestão mais eficiente, fica ainda melhor. Então, é possível mesmo com o financiamento atual avançar muito na regionalização, porque se usa melhor o que se tem. Agora, o subfinanciamento estrangula a construção de novos hospitais, de institutos de oncologia, e impede a expansão da atenção básica, o investimento em pessoal.

RR – Mas a lei de responsabilidade fiscal não seria um fator impeditivo para esse projeto de regionalização?

GW – Sim. Tem que ser uma decisão de Estado e de governo. Não dá para essa autarquia, o SUS Brasil, ter apenas 54% de gasto com pessoal. Estudos indicam que os sistemas de boa qualidade com um bom padrão gastam em torno de 70% com pessoal. Afinal, a área de saúde é intensiva em recursos humanos. Como a educação. A Lei de Responsabilidade Fiscal poderia continuar para os municípios, mas com a saúde fora porque estaria na autarquia.

Se houver um limite de gasto de pessoal na autarquia, o que é uma discussão futura, que seja de 70%, que é próximo ao padrão internacional para pessoal. Por isso, deve ser uma iniciativa nacional, uma proposta de revogação. Essa é uma pressão que tem de ser enfrentada porque é outro estrangulamento do SUS.

* – Gastão Wagner é Professor do Departamento de Saúdo Coletiva da Unicamp e membro da Plataforma.

Vídeo:

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