Restrições e perspectivas do crescimento econômico no Brasil

Roberto Pires Messenberg*

A partir de 1999, a adoção do sistema de metas para a inflação pretendia a substituição formal da taxa de câmbio como âncora nominal do nível geral de preços na economia brasileira. Segundo suas premissas, a taxa de câmbio livre deveria ajustar as contas externas do país, e haveria precariedade na utilização do estoque de moeda como âncora nominal dos preços, em função das flutuações em sua velocidade-renda ao sabor das inovações financeiras e dos ventos das expectativas, inclusive sobre os rumos da política fiscal. Assim, sob o regime de metas para a inflação, sobre o alicerce fiscal e através da administração exclusiva da taxa básica de juros, a missão da política monetária seria coordenar (ancorar) as expectativas inflacionárias, promovendo a ligação temporal consistente entre prazos curtos e longos na economia.

Não obstante a observância dos quesitos anteriores, a implantação do novo sistema não impediu que a economia brasileira passasse a enfrentar, sistematicamente, situações nas quais, em graus variados, combinavam-se pressões inflacionárias latentes e baixo crescimento do produto potencial.

Desse modo, as insuficiências do sistema de metas para inflação acabaram por ensejar – em flagrante contradição com o que dele se pretendia inicialmente – uma subordinação crescente da política econômica à busca da convergência das expectativas de curto prazo prevalecentes nos mercados de ativos financeiros. Ao longo do tempo, contudo, os limites e os custos de longo prazo impostos por este condicionamento da política econômica passaram a ficar cada vez mais evidentes.

Nesse sentido, a brusca desaceleração do crescimento da economia internacional a partir de 2008 – e, consequentemente, também, da significativa elevação dos preços reais das commodities exportadas pelo Brasil desde 2004 – tornou manifesta, uma vez mais, a tendência de falta de funcionalidade do regime de câmbio flutuante com vistas a um ajustamento positivo das exportações líquidas. Em que pesem, assim, as dificuldades postas desde então pelo próprio movimento de desaceleração dos fluxos de comércio internacional, esta carência persistente de funcionalidade do regime cambial (idealizado no âmbito do sistema de metas para a inflação) deve ser atribuída, essencialmente, ao recurso sistemático da valorização da taxa de câmbio como recurso privilegiado da política de contenção inflacionária.1

Do ponto de vista das relações entre o formato da política econômica (sob o sistema de metas para a inflação) e a dinâmica do crescimento, deve-se destacar que o movimento expansivo da economia brasileira entre os períodos iniciais das duas primeiras décadas do século XXI constituiu, essencialmente, um reflexo da conjuntura econômica mundial. Esta última, através de seu impacto favorável sobre os termos de troca envolvidos nas mercadorias comercializadas pelo Brasil, estimulou fortemente os investimentos e a produção nos setores produtores de commodities, compensando com folga (ao menos enquanto manteve-se vigorosa) a progressiva fragilidade dos investimentos e da produção doméstica na indústria manufatureira, em decorrência dos movimentos sistemáticos de valorização cambial e de elevação do custo unitário do trabalho.

Assim, enquanto cresciam, os ganhos derivados dos termos de troca nas exportações líquidas de commodities determinavam, por um lado, uma redução significativa da fragilidade externa na economia brasileira (relaxamento da restrição à utilização de divisas estrangeiras) e, por outro, um influxo positivo de renda responsável pelas elevações concomitantes (embora decrescentes no tempo) do consumo privado, das importações, da poupança nacional e, finalmente, do próprio ritmo de crescimento do produto, sem contrapartida em aumentos sistêmicos de produtividade.

Cabe aqui, portanto, uma consideração sobre a ocorrência de uma eventual mudança estrutural na economia brasileira, marcadamente a partir de 2004, com a emergência de um novo padrão de demanda agregada determinante do fortalecimento do mercado interno e do estímulo ao crescimento.

Em última instância, essa mudança estaria ligada à adoção intensa de políticas públicas redistributivas, como aumentos reais do salário mínimo e das Transferências Públicas Previdenciárias e Assistenciais (TAPS), além da expansão significativa do crédito, com o crescente financiamento do consumo privado pelos bancos públicos. Dadas as características gerais do novo padrão da demanda agregada, bem como sua suposta dominância sobre a dinâmica do crescimento econômico brasileiro, passou-se, usualmente, a identificá-lo como “modelo de crescimento baseado no consumo”.

A esse respeito, contudo, deve-se notar que o funcionamento do modelo de crescimento baseado na expansão do consumo pressupõe, fundamentalmente, a ocorrência de uma estreita e cumulativa interação dinâmica entre as demandas de consumo e de investimentos na economia. Vale dizer, a efetividade desse modelo depende do fato de que a aceleração da demanda de consumo – independentemente da identificação de seus fatores propulsores primários – seja estimulante o suficiente para deflagrar a dinamização sustentada da demanda de investimentos na economia; algo que efetivamente não ocorreu a partir da crise de 2008. Este fato é contraditório, portanto, com o entendimento da expansão econômica até recentemente observada no Brasil nos termos de um modelo de crescimento sustentável liderado pela demanda de consumo.

Na verdade, o movimento de expansão da economia brasileira no momento atual apresenta evidências de um esgotamento e enfrenta riscos para sua continuidade. Isto porque, do ponto de vista do setor externo, a cumulativa dominância temporal da política monetária sob o regime de metas de inflação acabou por levar à constituição de uma deformidade estrutural: um espaçamento na base produtiva determinante de variações positivas dos saldos comerciais pouco sensíveis às desvalorizações reais do câmbio, mais dependentes da redução nos níveis de atividade interna e do sopro extraordinário dos “bons ventos” (nacionais e estrangeiros) para as exportações de produtos básicos; e incapazes, consequentemente, de difundir efeitos dinâmicos de longo alcance sobre o conjunto do sistema econômico.

Por outro lado, da perspectiva do mercado interno e dos fluxos domésticos de produção, a dominância monetária (ou financeira) com câmbio valorizado durante um período extenso acabou por estimular influxos líquidos crescentes de capital, vinculando, ao mesmo tempo, os incentivos domésticos de produção à expansão da oferta de bens com menor grau de “tradeability”, ou seja, justamente das atividades de setores caracterizados pelo reduzido potencial de comercialização externa dos produtos e de mobilização dos investimentos produtivos transformadores. Associou-se, assim, à crescente mobilidade e influência dos fluxos financeiros externos na economia brasileira, uma perda contínua de flexibilidade em sua base produtiva. No momento atual, esta última encontra-se ressentida pela:

a) ampliação acentuada da presença de bens complementares à produção doméstica na pauta de importações; o que limita o alcance no tempo de um padrão mais equilibrado de comércio exterior (objetivo último da colapsada estratégia anterior, de substituição de importações);
b) especificidade do movimento de diversificação da pauta de exportações; movimento este realizado a partir do aumento das participações de produtos básicos, e de produtos manufaturados com maior inclinação ao emprego intensivo de insumos importados (físicos e financeiros) e ao atendimento de demandas cativas (doméstica ou regional).

Resta considerar então as possibilidades de empregar-se a política fiscal para relaxar a restrição à retomada dos investimentos que hoje limita as possibilidades de crescimento econômico sustentável a partir da expansão industrial e do fortalecimento dos saldos comerciais.

Dada a reduzida capacidade de resposta dos fluxos de produção de bens tradeables aos sinais nem sempre confortáveis emitidos pela demanda externa e pela a taxa de câmbio, não se pode conceber o relaxamento dessa restrição pela mera tenacidade para alcançar ajustes fiscais crescentes. Tomada nesses termos, tal postura serviria exclusivamente às condições imediatas de sustentação da afluência de capital externo na economia, com a convergência das expectativas de mercado no curto prazo, mas ao custo, entretanto, de permanecer a instabilidade latente da taxa real de câmbio e dos elevados patamares da taxa real de juros.

Do ponto de vista da absorção doméstica, o ajuste fiscal obtido por meio da contenção ao gasto público – dada a composição setorial deste último –, elevaria o excesso de oferta vigente sobre os setores produtores de bens non-tradeables, com efeitos marginais de curto prazo sobre a oferta excedente de bens tradeables.

Ainda assim, no entanto, uma contenção fiscal que contemplasse a ampliação das despesas públicas de investimentos e a queda da carga tributária no setor produtor de bens tradeables poderia ser considerada superior a qualquer variante de aperto monetário: seus efeitos positivos sobre as expectativas empresariais estimulariam os investimentos privados e, consequentemente, contribuiriam para eliminar a deformidade estrutural construída ao longo dos anos de proeminência da política monetária.

Em essência, o arranjo dos instrumentos da política fiscal deveria focalizar os obstáculos postos pela necessidade de realocarem-se os fluxos internos de produção. Assim, caberia à política econômico-fiscal a tarefa de incentivar a remodelagem da base produtiva na economia brasileira, em direção à superação definitiva dos problemas trazidos de forma recorrente pela inconsistência dos movimentos de valorização cambial.

Desta perspectiva, os avanços nos investimentos públicos e das concessões públicas ao investimento privado constituem o ponto central da política econômica. Através deles, obter-se-iam o alargamento do horizonte de cálculo empresarial e a continuidade da trajetória de queda das taxas domésticas de juro, cujo piso passaria a refletir os níveis das taxas praticadas no mercado internacional.

Ao longo do tempo, a elevação da taxa agregada de investimentos tornaria as trajetórias declinantes das taxas reais de juro e de câmbio compatíveis com a menor aversão (relativa) ao risco dos investidores internacionais e a maior oferta relativa de bens tradeables na economia. Consistentes, portanto, com a robustez do balanço de pagamentos e o pleno emprego dos recursos produtivos. Sem inflação.

NOTA:

Implicitamente, reconhecer este ponto implica reconhecer também a patente inoperância da tentativa de calibragem do hiato do produto na economia, mediante a manipulação da taxa básica de juros, como via primordial de controle da inflação.

* Roberto Pires Messenberg é Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea/Diest.