Salário mínimo: desdobramentos da concessão de aumentos reais

Juliano Sander Musse*
“Não é o empregador quem paga os salários. Ele só os entrega. Quem paga os salários são os clientes.” Henry Ford

Sempre nos finais de ano volta à cena o debate sobre o reajuste do salário mínimo (SM), sendo questionada a necessidade de maior valorização para o piso salarial, bem como o impacto de tal aumento nas contas públicas.

Ao contrário do enfoque dado pelo lado das despesas e seu “excessivo” impacto nas contas públicas, comumente pulverizado pela mídia, este artigo tem o propósito de apontar a importância de se conceder aumentos reais expressivos aos salários mínimos (SMs) como forma de manutenção dos direitos básicos alcançados com a Constituição de 1988.

Aumentos reais do SM, que beneficiam direta e indiretamente milhões de brasileiros, são ações, equivocadamente, classificadas como barreiras ao progresso e ao crescimento econômico e como sinônimo de desemprego e informalidade. O debate distorcido consegue até caracterizar a previdência social como o principal problema das contas públicas, sendo inclusive apresentada como obstáculo a recuperação do SM e a sua elevação a um patamar de dignidade prevista constitucionalmente.

Antes de se iniciarmos uma análise propriamente dita das questões envolvendo o SM, vejamos a opinião de alguns autores sobre a polêmica questão da desvinculação do SM como piso previdenciário. Para Saboia , o fato de o SM ter passado a representar um duplo papel de piso no mercado de trabalho e de piso na Seguridade Social (inclusive na assistência social) faz com que qualquer tentativa de elevação de seu valor esbarre nas dificuldades das contas públicas do país. Portanto, uma alternativa possível seria desvincular parcialmente os dois pisos. Tal desvinculação, entretanto, teria que ser feita com salvaguardas para não prejudicar os beneficiários da política social. Para solucionar o problema o autor apresenta algumas propostas, dentre elas a de que o SM serviria apenas como piso para o mercado de trabalho e para as aposentadorias contributivas. Assim, tanto o salário mínimo quanto os benefícios previdenciários poderiam ser reajustados ao longo do tempo, reduzindo eventuais pressões sobre as contas públicas. Já Dain e Matijascic , dentro do mesmo escopo, defendem uma valorização real do salário mínimo para depois se pensar em desvinculação do piso. Para esses autores, o fato de o salário mínimo estar atrelado ao piso previdenciário é defensável sob o prisma social, pois o problema consiste em conferir garantias de melhores condições de vida. Quando os valores pagos pelo piso garantirem finalmente condições dignas a um aposentado de forma sustentável, será possível retomar o debate sobre a desvinculação entre o piso previdenciário e o salário mínimo com algum grau de legitimidade.

Independente se o processo passa por obter maiores ganhos reais para desvincular ou desvincular para se obter maiores ganhos reais, o que de fato precisa ser feito é perceber a real importância salário mínimo para a economia, principalmente a dos pequenos municípios, e para a vida de milhões de brasileiros que dele dependem.

Primeiramente o salário mínimo em nosso país ainda é baixo e não condiz com o tamanho da nossa economia, mostrando-se incapaz de proteger o trabalhador ou de atender aos preceitos constitucionais (CF/88, art. 7º, inciso IV). Para que o Brasil possa crescer de forma permanente, mantendo uma política social coerente e reduzindo a desigualdade da renda dos ocupados, é necessário, dentre outras medidas, estender os aumentos reais do SM como elemento de valorização do trabalho. O Gráfico 1 mostra os aumentos reais concedidos ao salário mínimo a partir de 1981, bem como a desigualdade da renda do trabalho, apurada aqui pelo Índice de Gini . Instrumento utilizado para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo, esse índice mostra que, a partir de 1993, com mais intensidade a partir de 2005, marco que se verifica maiores aumentos reais concedidos ao SM, houve melhoria mais significativa na distribuição da renda do trabalho.
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Os avanços concedidos, principalmente após 2005, também são importantes para o país na medida em que se consegue reduzir o percentual de brasileiros que vive na pobreza, pois além de movimentar a economia e o comércio dos municípios, diminuem o êxodo e o processo de favelização das grandes cidades.

A pobreza nos últimos anos teve dois ciclos de queda consideráveis, demonstrados aqui no Gráfico 2, elaborado pelo MPS – Ministério da Previdência Social – com base na PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios do IBGE – muito em virtude de medidas atreladas ao SM e a previdência social: (i) implantação das Leis 8.212/91 (Plano de Custeio) e 8.213/91 (Planos de Benefícios); (ii) aumentos reais concedidos ao salário mínimo, principalmente após 2005, que ampliaram o piso da previdência e os Benefícios de Prestação Continuada – BPCs (assistência social); e (iii) programas de transferência de renda, principalmente o Bolsa Família, no período após 2003. Em conformidade as ideias de Marques , no que se refere ao SM, não há uma clara vinculação com o Bolsa Família, que é expresso em valor absoluto. Mas considerando que o Programa é voltado para os segmentos mais pobres da população brasileira, o salário mínimo mantém-se sim como referência.
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Em outra análise do MPS, considerando como referência uma renda domiciliar per capita inferior a ½ SM de 2009 (Tabela 1), o pagamento de benefícios previdenciários e assistenciais conseguiu retirar 23,1 milhões de pessoas da linha da pobreza . O percentual de pobres sem as transferências previdenciárias se situaria em 42,2% em 2009. Com as transferências previdenciárias esse percentual cairia para 29,7%, passando a representar 12,5% do total da população de referência naquele ano.
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A importância da manutenção de aumentos reais concedidos ao SM está muito bem demonstrada em dados da Anfip , segundo a qual os 12% de reajuste, em 2009, resultou em um ganho real de 5,8%. Somente recebendo do governo federal, esse reajuste atingiu 41,7 milhões de beneficiários direitos, titulares de direitos a benefícios assistenciais (LOAS e RMV), previdenciários (urbanos e rurais) e trabalhistas (seguro desemprego e abono salarial). Ao longo do ano, somente o Orçamento da Seguridade Social pagou R$ 131 bilhões com essas prestações vinculadas ao SM. Um valor nada desprezível, ainda mais quando se sabe do grande efeito multiplicador que o consumo, determinado pelo aumento da renda disponível, tem sobre o PIB.

A esse valor, ainda se somam os R$ 12,4 bilhões do Bolsa família e outros R$ 2,7 bilhões de outras despesas de natureza assistencial, dos quais R$ 1,8 bilhão em ações complementares do Fome Zero.

O salário mínimo, diretamente para os trabalhadores empregados, e indiretamente para os contratados em outras modalidades, tornou-se um importante referencial na luta pela valorização do trabalho e justa distribuição de renda. Os aumentos reais concedidos nos últimos anos, bem como o esperado para janeiro dos anos seguintes, permitem reverter, em parte, a depreciação da renda do trabalhador, que se perpetuava desde a década de 1980 até meados de 1990. No entanto, se voltarmos os olhos no Gráfico 1 podemos ver que mesmo com os ganhos reais dos últimos anos, o SM ainda está aquém daquele em vigor no início dos anos 80.

Para aqueles que colocam o SM, e seus merecidos reajustes, como um fardo para as contas públicas é preciso também lembrar a injusta estrutura tributária brasileira, que possui grande quantidade de impostos que incidem sobre o consumo. Em outras palavras, ela tributa igualmente os desiguais, penalizando os mais pobres, que têm de arcar, com uma renda menor, com a mesma quantidade de impostos embutidos nos preços dos produtos. E trabalhadores e aposentados que ganham 1 ou 2 SMs não têm condições financeiras de formar poupança, revertem toda a renda em consumo.

Um estudo de Zockun mostra o quanto severo vem sendo os impostos para aqueles que possuem baixa remuneração. As pessoas que ganham até 2 SMs, estão tendo que arcar com cerca de 70% a mais de impostos do que 12 anos atrás. Uma família que ganhasse até 2 SM, em 2004, por exemplo, tinha 45,8% de sua renda corroída pelos impostos indiretos. Em 1996, essa mordida era de apenas 28%, uma expressiva diferença em apenas oito anos.

O impacto estimado do aumento dos benefícios previdenciários de até 1 SM nas contas públicas, com 7,84% de aumento (de R$ 510,00 para R$ 550,00), no período de janeiro a dezembro de 2011, incluindo o 13º salário, será de R$ 10,12 bilhões. Caso o aumento seja de 13,72% (de R$ 510,00 para R$ 580,00), como almejam as Centrais Sindicais, o impacto no período de janeiro a dezembro de 2011, incluindo o 13º salário, será de R$ 18,16 bilhões. Esses impactos são maciçamente divulgados pelos diversos meios de comunicação, muitas vezes, dependendo do interesse, como forma de “intimidar” o aumento do SM. Porque não fazer como o DIEESE , que mostrou em sua Nota Técnica nº 86, estimativas do aumento do SM na economia: em 2010, segundo a Nota, serão R$ 26,6 bilhões de incremento de renda na economia; R$ 7,7 bilhões será o incremento na arrecadação tributária sobre o consumo. Isso dentro de um universo de 46,1 milhões de pessoas que tem o rendimento referenciado no SM.

A defesa do salário mínimo e dos direitos dos trabalhadores, inclusive quanto à sua previdência, são instrumentos fundamentais na construção de uma Nação que cada vez mais vem almejando o desenvolvimento econômico-social com erradicação da pobreza. A valorização do salário mínimo foi, e continuará sendo, um importante instrumento de valorização do trabalho e prosseguirá desempenhando um papel fundamental na concretização desse ideário.

Artigo publicado no Boletim Tributação & Cidadania. Brasília: ANFIP, n.2, dez/2010.
Notas:

1.Economista assessor técnico do Sindifisco Nacional. Artigo elaborado para o Boletim Tributação & Cidadania. n.2, dez/2010.

2.SABOIA, João. Salário mínimo e mercado de trabalho no Brasil no passado recente. In BALTAR, P.; DEDECCA, C.; KREIN, J.D. Salário Mínimo e Desenvolvimento. Campinas, SP: Unicamp, IE, 2005.

3.DAIN, Sulamis; MATIJASCIC, Milko. Finanças públicas, salário mínimo e seguridade social: as aparências enganam. In BALTAR, P.; DEDECCA, C.; KREIN, J.D. Salário Mínimo e Desenvolvimento. Campinas, SP: Unicamp, IE, 2005.

4.É comumente utilizado para calcular a desigualdade de distribuição de renda. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda). Essas idéias estão muito bem colocadas no livro: Previdência social e salário mínimo: desenvolvimento econômico e social com valorização do trabalho. Disponível em: http://www.anfip.org.br/publicacoes/livros/includes/livros/arqs-pdfs/previ-2006.pdf

5.MARQUES, R.M. Salário mínimo, seguridade social e combate a pobreza. In BALTAR, P.; DEDECCA, C.; KREIN, J.D. Salário Mínimo e Desenvolvimento. Campinas, SP: Unicamp, IE, 2005.

6.Para efeito de cálculo o MPS considera a linha da pobreza como equivalente a ½ salário mínimo

7.ANFIP. Análise da Seguridade Social 2009. Brasília: Anfip, 2010.

8.ZOCKUN, M. H. O Atual sistema tributário brasileiro: um obstáculo ao crescimento econômico e à melhor distribuição de renda. In MARCOVITCH, J. Crescimento econômico e distribuição de renda. São Paulo: Editora da USP: Editora Senac São Paulo, 2007

9.Metodologia própria (Anfip).

10.Política de Valorização do Salário mínimo: considerações sobre o valor a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2010. Nota Técnica nº 86, jan/2010.

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