Sinais trocados na saúde

Mario Sheffer e Marilena Lazzarini

Lugar de conflitos de interesse, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) se vê diante de mais um escândalo.

Após a queda de um diretor da agência por ter omitido que trabalhou para empresas de planos de saúde, a presidente Dilma Rousseff indicou a posto semelhante o atual presidente da CNS (Confederação Nacional de Saúde), que aguarda sabatina no Senado.

A entidade representa hospitais, clínicas, laboratórios, operadoras de planos de saúde, e o indicado foi, no passado, presidente de empresa que atua na saúde suplementar.

Mais grave é a posição do possível novo diretor, revelada neste mesmo espaço da Folha, em 2010: “Questionamos no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade do artigo 32 da lei dos planos de saúde (lei nº 9.656/98), que prevê o ressarcimento ao SUS caso o beneficiário do plano seja atendido pelo sistema público”.

Pela lei, cabe à ANS identificar os pacientes atendidos no SUS, notificar as empresas sobre os valores a serem ressarcidos e cobrar a devolução. Em uma única reunião, em março de 2014, a diretoria da ANS deliberou sobre 99 recursos de planos de saúde contra o ressarcimento ao SUS.

O conflito anunciado envolve tema sensível à ANS. Já em 2009, o Tribunal de Contas da União alertou que a agência dá prejuízo aos cofres públicos, pois não identifica corretamente o que deve ser ressarcido e é lenta para realizar as cobranças, jogando os processos à prescrição.

Por isso, o volume do ressarcimento é insignificante. De 2001 a 2013, retornaram ao SUS apenas R$ 447 milhões. O SUS realiza por ano 11 milhões de internações, das quais pelo menos 200 mil são de clientes de planos de saúde, custo que chega a R$ 1 bilhão, sem contar os procedimentos ambulatoriais que, inexplicavelmente, não são processados pela ANS.

A Câmara dos Deputados e o Senado acabaram de aprovar redução do valor das multas dos planos de saúde, um incentivo às restrições de cobertura, infração mais cometida, piorando a situação atual, em que os pagamentos não chegam a 20% dos valores das sanções timidamente aplicadas pela ANS.

Em 2013, com o apoio do governo, a medida provisória nº 619 já havia livrado os planos de cobrança bilionária do PIS e Cofins. Tal vantagem tributária soma-se à renúncia fiscal no cálculo de Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, que sempre beneficiou os planos de saúde.

E, ainda, passaram a ganhar do BNDES linhas de crédito para ampliação de suas redes hospitalares. A ANS quer permitir que deem de garantia aos empréstimos a chamada reserva técnica –fundo obrigatório por lei para que, em caso de falência, as operadoras não deixem na mão os consumidores.

O subfinanciamento público é o maior algoz da saúde no Brasil. O gasto per capita do SUS, para toda a população, é de R$ 45 por mês. A receita dos planos de saúde chega a R$ 160 por pessoa, o que rendeu às operadoras R$ 93 bilhões em 2013.

Governo e parlamentares negam mais recursos ao SUS, sistema de todos os brasileiros, mas concedem incentivos econômicos e entregam a agência reguladora a um setor que assiste –e mal– apenas uma parcela da população.

Candidatos sempre defendem o SUS. Mas, na hora da doença, nunca querem se tratar nos mesmos locais onde tentarão ser atendidos os eleitores que desejam conquistar. E, na campanha, terão dinheiro farto dos planos privados.

A população que foi às ruas exigir serviços públicos de saúde de qualidade, o povo que aponta a saúde como o maior problema do Brasil talvez tenha percebido que os sinais estão mesmo trocados.

MÁRIO SCHEFFER, 47, é professor da Faculdade de Medicina da USP, membro do conselho diretor do Idec  e membro da Plataforma Política Social.
MARILENA LAZZARINI, 65, é presidente do conselho diretor do Idec

Artigo Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo.

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