Luiza Dulci [1]
Em novembro de 2017 o Banco Mundial apresentou o relatório “Um ajuste justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, que havia sido encomendado pelo governo brasileiro ainda em 2015. O Relatório se propõe a uma análise dos investimentos brasileiros em busca de soluções para o que seria o problema do déficit público.
Tendo em vista a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95 em dez/2016, conhecida como a PEC do ‘teto de gastos’, o Relatório apresenta um conjunto de medidas para viabilizar o seu cumprimento. Dentre os temas abordados pelo relatório, a previdência social ocupa lugar de destaque, apontada como “a fonte mais importante de economia fiscal de longo prazo“, de maneira que “a aprovação da proposta de reforma em tramitação no Congresso seria um passo importante na direção de corrigir esse desequilíbrio“.
Não é de hoje que são alardeados os déficits insustentáveis na previdência social. Dos argumentos que costumam fundamentar a retórica do rombo previdenciário – já contestado inclusive pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) –, dois deles merecem nossa atenção. O primeiro está ligado ao modelo de financiamento da previdência, fruto da escolha constituinte de 1988. Nosso sistema é tripartite, financiado pelos trabalhadores, seus empregadores e o Estado. Por isso, não há que se falar em autofinanciamento da previdência somente a partir das receitas da contribuição previdenciária. Aqueles que não podem contribuir ou que podem contribuir menos, devem, portanto, receber. O segundo argumento tem a ver com as previsões que sustentam as projeções atuariais da previdência. Todo e qualquer apontamento de déficit futuro deriva de projeções de receitas e despesas. O lado das despesas constitui-se dos pagamentos de benefícios de aposentadorias, assim como as desonerações, sonegações das contribuições e seus refis, os gastos com a dívida ativa previdenciária, dentre outros. Já o lado da receita é composto pelas fontes de arrecadação, que são tanto maiores quanto maiores os níveis de emprego formal, de renda e de eficiência na gestão. Isso faz com o que o resultado das contas da previdência seja dinâmico, respondendo aos estímulos macroeconômicos.
Materializada na PEC 287/2016, a reforma da previdência é, na realidade uma contrareforma, que tem dois objetivos principais: i) desativar ou enfraquecer a função distributiva do Estado; e ii) aquecer os mercados de previdência privada. As medidas propostas vão na contramão dos direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 (CF/88), construídos a partir de amplo processo de diálogo e de participação popular. Entre os direitos ameaçados pela PEC 287/2016 encontram-se os direitos previdenciários da população rural.
Os direitos previdenciários da população rural
Diferentemente dos trabalhadores urbanos que tiveram seu sistema previdenciário garantido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) na década de 1940, os trabalhadores rurais só vieram a ter direito à previdência social em 1971, quando foi criado o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). E somente com a CF/88, seus benefícios foram equiparados aos benefícios dos trabalhadores urbanos. De lá para cá tem-se constituído enorme esforço para a formalização desses trabalhadores e para sua inclusão no sistema de seguridade social.
As particularidades no desenho previdenciário rural advém das próprias particularidades do trabalho no campo, via de regra muito mais penoso que as modalidades de trabalho urbano – o que faz com a que a expectativa de vida dos trabalhadores rurais seja inferior à dos trabalhadores urbanos – e orientado pela dinâmica sazonal das safras agrícolas. Por conta disso, a CF/88 garantiu a idade mínima para a aposentadoria de 55 e 60 anos, para mulheres e homens respectivamente, com a comprovação de ao menos 15 anos de trabalho rural. No que diz respeito à agricultura familiar, o reconhecimento de suas especificidades levou à elaboração de uma contribuição de 2,1% do valor da produção comercializada, em formato familiar e sazonal.
As alterações originalmente propostas pela contrareforma da Previdência e endossadas pelo Banco Mundial visam a eliminação de tais especificidades. Na prática, portanto, propõem a extinção da previdência social rural.
A (contra)reforma previdenciária e outras recomendações do Banco Mundial
A PEC 287/2016 propõe alterações significativas nos critérios de acesso aos benefícios previdenciários dos trabalhadores rurais, assalariados e agricultores familiares. O texto original equipara a idade mínima necessária para a aposentadoria entre homens e mulheres, da cidade e do campo, em 65 anos. A repercussão negativa da proposta levou o relator da PEC a propor emenda substitutiva que reduz para 60 e 57 a idade mínima de homens e mulheres rurais, respectivamente.
A atual exigência de comprovação de 15 anos trabalhados na agricultura foi elevada para 25 anos de contribuição. Tal alteração foi parcialmente revista pela emenda substitutiva do relator, que retornou aos 15 anos anteriores, mas agora com a exigência da contribuição durante os 15 anos e não somente a comprovação do exercício do trabalho rural pelo mesmo período. A distinção entre tempo trabalhado e tempo de contribuição faz sentido pois a informalidade e as formas de incorporação adversas são muito comuns no mercado de trabalho rural, de modo que frequentemente o tempo efetivamente trabalhado não coincide com o tempo de contribuição previdenciária.
Outro ponto defendido pelo Relatório tem a ver com a taxa de reposição das aposentadorias, que seriam “muito altas no Brasil, pois a maioria dos trabalhadores ao fim de sua vida laboral recebe uma renda previdenciária equivalente a seu último salário (aposentadoria integral), ao passo que as taxas de reposição ficam em torno de 70% na maior parte dos países da OCDE”.
No que diz respeito ao segmento da agricultura familiar a contrareforma propõe uma alteração drástica no desenho da contribuição. O desenho sazonal e familiar atual busca respeitar as dinâmicas das safras agrícolas e a constituição da força de trabalho propriamente familiar de parcelas expressivas dos trabalhadores do campo. Com isso, conforme garantido pelo art. 195 § 8 da CF/88, as famílias contribuem com 2,1% da produção comercializada nos períodos de safra e têm direito ao seguro previdenciário para os/as chefes de família e seus cônjuges. Com a mudança proposta, a contribuição passa a ser mensal e individual. O Relatório assume que as contribuições rurais são insignificantes, de maneira que os benefícios previdenciários seriam verdadeiras transferências líquidas às famílias agricultoras: “Para eles [trabalhadores rurais], a aposentadoria é uma pura transferência pública”.
A disposição atual dos benefícios é apontada como causadora do déficit: “O déficit do RGPS (urbano e rural) atingiu 2,4% do PIB em 2016 , em que a aposentadoria rural é responsável por 1,6%”. A solução do Relatório é pela reconsideração da aposentadoria rural e de outros benefícios sociais, pois “embora a reforma represente um passo à frente, ela não eliminaria a necessidade de outra reforma significativa no futuro. Aposentadorias rurais são de facto, não contributivas e, portanto, o esquema das aposentadorias rurais do RGPS vai naturalmente implicar um déficit. Seria apropriado avaliar o sistema RGPS rural separadamente do resto do sistema RGPS, e compará-lo com o BPC e outros programas sociais em termos do seu custo fiscal e de seu direcionamento e generosidade”.
A aprovação da contrareforma da previdência é somente uma das recomendações do Banco Mundial voltadas ao equacionamento do déficit público. O Relatório recomenda ainda uma alteração há muito desejada por certos setores da sociedade brasileira: a desvinculação do benefício previdenciário do valor do salário mínimo. Nesse sentido, o Relatório vai mais longe e chega a propor a fusão de três benefícios sociais: a previdência social, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Bolsa Família. Apresentados como fontes de “inconsistências e duplicidade”, os programas seriam razões de “gastos excessivos“. “O BPC para os idosos mais pobres sobrepõe-se à aposentadoria rural (…) e a única diferença real entre os dois é o fato que o BPC exige comprovação de pobreza, ao passo que as aposentadorias rurais não são dirigidas somente aos pobres, mas a todos os que comprovam histórico de atividade rural. Ademais, os altos níveis dos benefícios das aposentadorias não contributivas (BPC para os idosos e aposentadorias rurais) introduzem um desincentivo à contribuição exigida pelos programas de previdência contributiva“. A solução? “A aposentadoria rural, o BPC e os programas de assistência social (Bolsa Família e Salário-Família) poderiam ser fundidos em um só programa que usasse o Bolsa Família como modelo”. Fica a pergunta: qual o sentido de incentivar trabalhadores rurais idosos a integrar o mercado de trabalho?
O Relatório segue: “Um novo programa consolidado de assistência social poderia ser baseado no bem sucedido Bolsa Família e em melhores práticas de países da OCDE. No âmbito de tal programa, todos os indivíduos em situação de pobreza estariam aptos a receber não mais de uma transferência condicionada à renda”. A recomendação é mesmo eliminar as aposentadorias rurais e reduzi-las ao que seria o benefício médio do Bolsa Família ou a 60% do valor do BPC. “No geral, os resultados mostram que a pobreza não aumentaria muito como resultado das simulações de diminuição do nível de benefícios do BPC e da aposentadoria rural, enquanto que haveria uma grande redução da pobreza como resultado do aumento dos benefícios do Bolsa Família”.
O trecho transcrito deixa evidente a tolerância com a pobreza. As propostas apresentadas não visam sua eliminação, mas preocupam-se apenas em mantê-la em níveis aceitáveis, próximos das taxas correntes. Também está nítido o tratamento dos pobres como agregados estatísticos. Ou seja, avalia-se que com as alterações propostas a pobreza deverá permanecer como está, uma vez que aumentará entre os beneficiários do BPC e das aposentadorias rurais, mas deverá cair entre os beneficiários do Bolsa Família. Ressaltamos que a escala dos recursos a qual estamos nos referindo é muito baixa (dezenas ou centenas de reais), o que torna os efeitos das alterações próximas da linha da pobreza altamente sensíveis e dependentes de condições sociais e macroeconômicas mais amplas.
Todas as recomendações são orientadas pela noção de sustentabilidade de longo prazo (intergeracional), da previdência social. Assim, o Relatório conclui que para evitar que o custo total do ajuste seja pago pela gerações mais novas, “uma revisão do conceito de direitos adquiridos de forma a igualar (ou, pelo menos, aproximar) os benefícios oferecidos a gerações distintas de trabalhadores iriam garantir justiça intergeracional”.
Mirada sobre quem paga e quem não paga as contas do ajuste
As injustiças do ajuste não dizem respeito somente a quem estão direcionadas as medidas recessivas, ou seja, de quem está sendo cobrada a conta do ordenamento fiscal do país. O argumento de que esta seria uma tarefa de todos, é facilmente desmontado quando investigamos onde estão e onde não estão os cortes orçamentários e tributários.
No que tem relação direta com o tema da previdência social rural há duas questões que merecem destaque. A primeira delas se refere à EC 33/2001, que alterou o art. 149 da CF/88, isentando do pagamento de contribuições sociais as receitas decorrentes de exportação. Desde então, é, portanto, isento do pagamento de contribuições sociais o agronegócio exportador. A segunda questão diz respeito aos processos periódicos de refis (programas de refinanciamento de dívidas tributárias) que perdoam as dívidas de devedores da previdência social e acabam por tornar aceitáveis a sonegação da contribuição previdenciária – e das demais contribuições sociais.
O refis do Funrural (MP 793/2017) é bastante ilustrativo das escolhas sobre onde e sobre quem destinar as medidas de ajuste. Concomitantemente à discussão da contrareforma previdenciária, o governo federal aprovou o perdão da dívida dos empregadores rurais com o Funrural e a eliminação das multas devidas. Trata-se de uma renúncia fiscal de cerca de R$ 18 bilhões, sendo que os R$2 bilhões a serem pagos poderão ser negociados em até 20 anos.
Impactos diretos e indiretos das injustiças do ajuste previdenciário
Os impactos das recomendações do Relatório relativas ao rural atingem diretamente as populações do campo, das florestas e das águas. Tais medidas vão dificultar quando não impedir o recebimento dos benefícios de aposentadoria por parcelas expressivas dos trabalhadores rurais.
Associada à reforma da previdência, a aprovação da reforma (anti)trabalhista (Lei. 13.467/2017) e da terceirização irrestrita (Lei. 13.429/2017) reforçam a mesma lógica de desregulamentação do mercado de trabalho e agravam os impactos sobre as receitas da previdência social. A nova legislação trabalhista (incluída a terceirização) estimula formas de contratação de tipo informal, algumas das quais sequer prevem recolhimento previdenciário – o que significa queda nas receitas. Tais formas de contratação são afeitas às sazonalidades das safras agrícolas e devem ampliar-se cada vez mais nos espaços rurais, solapando os esforços pela formalização e pela proteção laboral e social do Brasil das últimas décadas.
Na agricultura familiar, com a passagem para as contribuições mensais e individuais, as famílias precisarão escolher quem será o segurado – isso quando for possível arcar com as contribuições mensais. Não seria surpresa constatar que o patriarcado historicamente presente nos espaços rurais deverá levar à escolha dos homens como os beneficiários prioritários da família, em detrimento das mulheres.
Os efeitos da desvinculação do benefício previdenciário do valor do salário mínimo seriam drásticos, uma vez que para muitas famílias agricultoras, esta é uma das poucas fontes monetárias correntes. Sua retirada compromete não somente a vida das famílias, mas também a dinâmica econômica dos pequenos municípios brasileiros. Lembramos que dos 5.553 municípios do país, mais de 3.800 possuem menos de 20 mil habitantes. Neles, as interações e os traços sociais são fortemente marcados pela ruralidade, assim como são expressivas as parcelas do PIB advindas das atividades agrícolas e/ou correlatas.
Os impactos sobre as populações do campo são também extrapolados para a as populações urbanas e para a dinâmica socioeconômica do país de modo geral. Os efeitos da reforma antitrabalhista, da liberação da terceirização irrestrita, da contrareforma da previdência, somados à extinção das políticas de desenvolvimento rural e ao aumento da violência no campo vêm acompanhados do aumento do êxodo rural, em especial da juventude. E o comprometimento da sucessão rural no campo, em especial aquele ligado ao modelo de produção familiar, se apresenta como uma ameaça à segurança e a soberania alimentar brasileira.
[1] Luiza Dulci é economista (UFMG) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (CPDA/UFRRJ). Integra o Coletivo Nacional Agrário do PT.