Bruno De Conti*
A gestão da política macroeconômica envolve por vezes a criação de rótulos que têm a função de facilitar a compreensão e difundir no imaginário coletivo alguma ideia-força. Em 1999, como saída para uma profunda crise cambial, que punha em xeque o regime vigente, implementou-se o chamado tripé de política macroeconômica, composto de um regime de metas de inflação, taxas de câmbio flutuantes e a busca por superávits primários predeterminados. Pela imagem criada, a economia brasileira reencontraria seu equilíbrio ao assentar-se firmemente sobre esse tripé.
Os anos passaram-se, a economia brasileira mudou, os desafios foram-se transformando e eis que em 2012 surge um novo rótulo: a “nova matriz macroeconômica”. O governo procurou apresentá-la como novidade promissora, e a oposição não tardou a apropriar-se dessa nomenclatura para estigmatizá-la como a culpada pelo conjunto dos problemas econômicos do país. Alguns analistas parecem atribuir todas as mazelas da economia brasileira a essa pretensa nova matriz, que, fragilizando o tripé, teria provocado os tombos recentes.
Dezesseis anos depois da implantação do tripé macroeconômico, portanto, a pressão da oposição e da mídia para que o tripé retorne é avassaladora. Afinal, a economia brasileira está novamente desequilibrada, e a ideia-força supracitada indica que a solução é colocá-la novamente sobre o tripé mágico.
Essa ideia-força acaba desincentivando análises mais complexas e aprofundadas. Nada surpreendente, já que é essa exatamente a função das ideias-força. Mas as tentativas para compreender a realidade econômica brasileira atual não se podem prender a esse nível de superficialidade. Será que é realmente a fraqueza do tripé que está gerando as dificuldades hoje vividas pela economia brasileira?
Para responder a isso, outra indagação é previamente necessária: quais são as principais dificuldades da economia brasileira hoje?
Fazendo inicialmente uma concessão analítica e partindo do arcabouço dos defensores do tripé, diríamos que é o descontrole do gasto público. As explicações a respeito podem ser rebuscadas, mas o propósito último do governo é evitar a perda do “grau de investimento” atribuído pelas agências de rating. Já que não somos mais devedores do FMI, cabe hoje a essas agências o papel de impor a “disciplina dos mercados” a toda a nação. Mas, para além do desconforto inerente ao simbolismo de uma nota rebaixada, o que significaria para o país, na prática, perder o grau de investimento?
Sou obrigado a concordar que atualmente isso configuraria um cenário complicado, já que afugentaria uma parte do capital estrangeiro que flui anualmente para o Brasil ou que já compõe o nosso passivo externo. O que em si não é problema, mas torna-se grave em um contexto em que dependemos desse influxo pela conta financeira para cobrir nosso déficit em transações correntes, já da ordem de 4% do PIB.
Onde está, então, o problema? No “elevado gasto público” ou no grande déficit em transações correntes? Será que a única solução está nesse reforço do tripé, que pode evitar problemas maiores no curto prazo, mas não atacará a razão maior dessa vulnerabilidade? Por que não resolver o problema com política industrial, redução do déficit nos serviços ou mesmo com uma política mais seletiva do capital estrangeiro, que não nos deixe à mercê de sua liquidez e potencial volatilidade?
Ainda no arcabouço daqueles que defendem o tripé, o segundo “grave problema” pelo qual estaria passando a economia brasileira seria o recrudescimento da inflação. Clamam que o Banco Central estaria sendo complacente com a inflação, quando deveria cumprir fielmente com seu papel de debelá-la a qualquer custo. Clamam, ainda, que o supramencionado excesso de gasto público também estaria na origem desse novo “descontrole”, o inflacionário. A solução simples: mais uma vez, voltar ao tripé, com austeridade fiscal e elevação das taxas de juros, para levar a inflação para o centro da meta. Ora, a inflação recente foi alimentada, sobretudo, pelas quebras de safra, pela elevação salarial – principalmente nos serviços – e pela elevação da taxa de câmbio.
Diante desse diagnóstico, diversos analistas têm apontado que seu combate pela via da contenção da demanda exigirá recessão e aumento do desemprego. Há aí uma clara inversão entre meios e fins. Para quê insistir no tripé, se a tendência é que ele gere prejuízos importantes a parte da população?
Pesquisas mostram que a maioria das categorias profissionais têm conseguido reajustes salariais reais, autorizando-nos a propor que a obsessão pelo tripé pode ser relativizada num momento como esse, sobretudo porque parte da inflação decorre justamente da elevação salarial de classes mais vulneráveis. Ademais, é preciso ir mais fundo nas propostas de combate à inflação, por exemplo, por meio de mudanças nas regras de indexação de contratos que permitem elevações por vezes ultrajantes em aluguéis, mensalidades escolares, planos de saúde, etc. O tripé, portanto, não deve ser visto como um fim em si, nem sequer como o único meio.
São apenas alguns exemplos que mostram que mesmo para os problemas apresentados como graves por aqueles que defendem o tripé canônico, as análises não podem se restringir àquilo que está previsto pelo seu arcabouço. E deixando a concessão analítica de lado, podemos ainda tocar em problemas da economia brasileira que não costumam ser elencados por esses defensores do tripé, mas que são absolutamente fundamentais: mesmo tendo melhorado, a desigualdade de renda no Brasil é ainda inaceitável, seja do ponto de vista pessoal, seja – principalmente – funcional; no que concerne aos estoques de riqueza, essas disparidades são até mais graves, aí incluída a aberrante concentração fundiária; o mercado de trabalho brasileiro continua extremamente precário; e assim por diante. Problemas, portanto, que não podem ser explicados pela fragilidade do tripé.
Nesse ponto, dirão alguns: mas isso não guarda relação direta com a política econômica. Exatamente. Nem tudo se resume à gestão da política macro. O que significa que nem tudo o que vai mal com a economia brasileira é fruto de equívocos de política macro. Houve indubitavelmente equívocos e eles têm sim responsabilidade sobre alguns dos problemas atuais. Mas apregoar que a economia brasileira está desbalanceada por não estar assentada no tripé, como querem fazer crer, é bastante enganoso.
Não quero dizer com isso que a política macroeconômica não seja central. Ao contrário, ela é importantíssima para qualquer projeto nacional; e os preços macro são extremamente relevantes para a dinâmica econômica de um país. No entanto, ela não deve ser sacralizada ou colocada acima de todas as outras políticas. Menos ainda, enquanto objetivo em si. Ela deve ser funcional a um projeto nacional, mas não deve jamais ser encarada como “o” projeto nacional. É um importante instrumento para perseguir objetivos que façam parte desse projeto, mas não deve nunca ser encarada como o único instrumento. E por fim, em função de sua importância, não deve ser cristalizada, mas deve ter a maleabilidade necessária para servir aos propósitos de um país específico, em todas as conjunturas econômicas específicas.
Definitivamente, não é a política econômica, sozinha, que manterá de pé a economia de um país. Menos ainda uma política econômica rígida, em um país com necessidade de transformações, como o Brasil. Afinal, se um tripé macroeconômico não é capaz de sustentar uma economia nacional, um tripé estático parece ser ainda menos adequado a um país que tenta movimentar-se.
* – Bruno De Conti é professor do Instituto de Economia da (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon/Unicamp).