Amir Khair*
Neste artigo são contrapostas duas visões sobre a questão fiscal brasileira. Uma visão vê como vilão fiscal o crescimento das despesas públicas e separa despesas de custeio das relativas a investimentos, concluindo que o excesso de despesas de custeio impede que sobrem recursos para os investimentos na infraestrutura.
Defendem elevados superávits primários (receitas menos despesas, exclusive juros) para que seja possível reduzir a taxa básica de juros Selic. Para conseguir estes superávits defendem a redução das despesas da previdência social, do funcionalismo e dos programas sociais.
Para reduzir as despesas da previdência social advogam o estabelecimento de idade mínima para aposentadoria, contenção nos reajustes do salário mínimo e a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo. Para as despesas com pessoal, defendem a redução do número de servidores e contenção dos reajustes salariais.
O que está por trás desta visão é que o Estado é um mau aplicador de recursos ao contrário do setor privado. Assim, quanto menor a despesa com o Estado, mais recursos sobrarão para o setor privado. Esses recursos estariam sendo subtraídos das camadas da população de menor renda, inclusive dos que prestam esses serviços. É uma política minimalista do Estado, não apenas em seu tamanho, mas também em sua interferência na vida econômica das empresas.
A outra visão considera além das despesas, as receitas públicas como determinantes dos resultados fiscais e vê como inadequada a oposição entre despesas de custeio e investimentos por cumprirem funções distintas, complementares e necessárias.
Ao invés de manutenção de elevados superávits primários para reduzir a Selic, propõem a redução da Selic para permitir menores resultados primários. Assim, a adequação fiscal depende do Banco Central, que deveria operar com taxas de juros ao nível internacional, o que aliviaria rapidamente as despesas com juros, sendo esse o principal remédio para a saúde das finanças públicas.
É contra a idade mínima para a aposentadoria, caso mantido o fator previdenciário ou outro sistema que evite/reduza a aposentadoria precoce, e contra a desvinculação do piso previdenciário ao salário mínimo, que deverá crescer para reduzir as desigualdades na distribuição de renda. Com relação às despesas de pessoal defendem a adequação delas às necessidades de atendimento das competências atribuídas pela Constituição Federal ao Estado.
Destacam o custo crescente do carregamento das reservas internacionais devido ao diferencial de juros internos que paga e os externos que recebe, além de sua elevação contínua que agrava esse custo.
O que está por trás desta visão é que o Estado deve regular a economia e ter os recursos necessários para cumprir as obrigações que lhe são atribuídas pela sociedade na Constituição Federal.
Ambas as visões reconhecem que as despesas públicas devem ser racionalizadas e priorizadas, evitando desperdícios, só que para a primeira visão a redução de despesas deveria ser usada para investimentos ou abater a dívida pública. Para a segunda visão, especialmente para atender a demanda social reprimida e para programas de redistribuição de renda.
Breve análise dessas visões
Os determinantes dos resultados fiscais são o nível e a evolução das receitas e das despesas. As receitas dependem fundamentalmente da atividade econômica e da eficiência das máquinas fazendárias. Níveis de crescimento próximos a 5% ao ano permitem lucros e massa salarial superiores ao crescimento do PIB e o governo arrecada proporcionalmente a essas bases de tributação. Alem disso, com esse nível de crescimento do PIB se reduz a inadimplência e a sonegação. As despesas se subdividem entre custeio, investimentos e juros. As duas primeiras estão aquém das necessidades de atender aos elevados déficits sociais e de infraestrutura. As despesas com juros constituem a maior anomalia das contas públicas, devido ao elevado nível da Selic, que contamina de forma direta ou indireta o endividamento em títulos do governo federal. Nos últimos dezesseis anos (1995 a 2010) a gastança com juros atingiu em média por ano 7,37% do PIB!
É importante destacar que há vários anos o Brasil tem a mais elevada taxa básica de juros. Em 22/abril alcançou 6,2% excluída a inflação. Nesse nível é quase o triplo do segundo colocado, a Turquia, que está em 2,2% e a média nos países emergentes que está, atualmente, negativa em 0,5%. Essa taxa elevada tem sido a causa principal da valorização do real, prejudicando nossas exportações e criando um rombo crescente nas contas externas.
Independentemente da obrigação de racionalizar e priorizar as despesas e investimentos é importante reconhecer a importância que têm cada uma para o desenvolvimento econômico e social do País. As despesas de custeio contribuem para reduzir o déficit social e os investimentos atendem às necessidades de ampliar a oferta de equipamentos públicos e de infraestrutura.
É importante destacar que os investimentos acarretam elevações permanentes de despesas de custeio, pois exigem a sua operacionalização, sua manutenção e depreciação. O investimento em um hospital, por exemplo, exige em média uma despesa anual de custeio equivalente ao valor total investido. No caso de escolas o custeio anual gira em torno de 70% do investimento.
Assim, não é de estranhar que haja um crescimento natural das despesas de custeio, pelos investimentos e/ou ampliação do atendimento da expansão da demanda, em geral reprimida.
Um dos termômetros das contas públicas é o resultado nominal (resultado primário menos os juros). Ignorar os juros como despesa pública é, além de um erro conceitual, a desconsideração de um dos maiores componentes da despesa pública. O outro termômetro é o nível e a evolução da relação entre a dívida e o PIB. Essa relação depende do resultado nominal e não do resultado primário. Está sendo elevada nos últimos anos pelos empréstimos ao BNDES e pela elevação das reservas internacionais através das chamadas operações compromissadas do Banco Central. Em ambos os casos não ocorre de imediato à alteração da dívida líquida, pois ativos e passivos se igualam, mas devido ao diferencial de juros acabam elevando a dívida líquida com o passar do tempo.
Em termos macroeconômicos os gastos do governo, das famílias e os investimentos compõem a demanda. Se ela sobe acima da oferta de bens e serviços (inclusive de importação) há pressão inflacionária. Quando o Banco Central eleva a Selic, cria um gasto adicional de governo e eleva a demanda, podendo ocasionar inflação. Para os aplicadores que ganham com a elevação da Selic, há um aumento do consumo pelo efeito riqueza (percepção de riqueza pelas pessoas em decorrência da valorização dos ativos por elas possuídos).
Ainda sob o aspecto fiscal uma elevação das despesas com juros equivale a uma redução de igual montante no resultado primário, piorando as contas públicas.
Existem estudos que demonstram que o crescimento das despesas previdenciárias pelo envelhecimento da população, caso mantido o fator previdenciário, é mais do que compensado pela redução das despesas na área social com a diminuição da população jovem, mesmo elevando substancialmente a despesa per capita atual com as funções da área social.
Quanto ao impacto do salário mínimo na previdência social, deve-se levar em conta o efeito que causa nas receitas públicas pela ativação da economia. Fato é que a maior diferença entre os benefícios e contribuições da previdência social ocorreu no biênio 2003/2004 com déficit de 1,6% do PIB. Em 2010 foi reduzido para 1,2% do PIB, contrariando as teses defendidas pelos que vêem na previdência social o maior problema fiscal do Brasil.
Com relação às despesas de pessoal o que deve nortear seu montante é a adequação delas às necessidades de atendimento das competências atribuídas pela Constituição ao Estado, supondo uma gestão de recursos humanos adequada.
O setor público tem muito a avançar neste aspecto. É provável que haja excesso de servidores nas funções-meio e falta nas funções-fim. As funções-meio devem atender ao cipoal burocrático existente pelo excesso de leis, decretos e portarias e servem de suporte administrativo, jurídico e operacional às funções-fim, aonde se dão as prestações de serviços nas áreas sociais, de segurança, de fiscalização e de atendimento ao público.
As funções-fim concentram cerca de 80% do total de servidores públicos e são patentes suas carências em termos quantitativos e qualitativos. Devem ser estabelecidos limites estreitos aos cargos em confiança, que em muitos casos servem fundamentalmente como cabos eleitorais.
O Estado numa sociedade democrática deve atender o que lhe é determinado pela sua Constituição tanto em termos de prestação de serviços e investimentos quanto na regulação e participação da atividade econômica e financeira. Caso ela determine o atendimento universal para a saúde, previdência, assistência social, segurança e educação até o ensino médio, como é o nosso caso, deve contar com os recursos necessários a essas finalidades. Assim, afirmações genéricas sobre excesso de despesas de custeio e a omissão às despesas com juros têm efeito meramente político-ideológico e fogem da análise da realidade dos elevados déficits sociais e de infraestrutura do País.
Publicado no Boletim Tributação & Cidadania, n 3, maio de 2011, Fundação Anfip
* Mestre em Finanças Públicas pela FGV e consultor.